Eu sou o Pato Donald! Eu sou o Pato Donald!
Advogados não são criaturas notórias por possuírem um admirável senso de humor. Afinal, você já viu alguma cobra rindo? Por outro lado, estagiários de Direito são seres que normalmente se vestem bem, escrevem bem e se acham muito. Porém, a parte mais legal neles é a função bônus de bobo da corte acoplada. Meu último colega de profissão imitava perfeitamente o Jhonny Bravo, sabia de cor todas as piadas do stand-up comedy do Chris Rock e falava “How you doin’?” para a advogada chefe.
Além disso, como nosso expediente terminava às 18h00, quando era aproximadamente 17h30 nós dois decidíamos sorrateiramente quem contaria a piada do dia. Os advogados morriam de rir e a gente enforcava meia-hora de serviço. Seja por mérito nosso ou demérito da perspicácia dos advogados, sempre funcionou.
Outra consideração interessante: advogado não corre, caminha. Se algum dia você ver um advogado correndo, fodeu. Se um advogado está correndo é porque alguma merda grande ele fez. Por isso que estagiário de Direito vive correndo, eles só fazem merda. Você deve estar pensando: “Estagiário só faz merda.” Não, não. Só estagiário de Direito faz merda e tem que sair correndo com um processo de 5 volumes, 300 mil páginas cada, nas mãos. E para piorar, vestindo terno e gravata num puta sol de 40° graus, se for homem, ou com um salto agulha, no meio da chuva, enquanto desvia dos buracos e das mãos bobas na Líbero Badaró, se for mulher.
Enquanto meu colega Jhonny (Bravo) era cara de pau e galanteador de esquina, meu enorme azar faria inveja ao Pato Donald. Todas as forças do universo conspiram para que eu me foda. Numa certa época cheguei inclusive a cogitar a idéia de que havia sido contratada exclusivamente para entreter o departamento com minhas atrapalhadas. Acompanhem comigo.
Certo dia meu chefe me mandou ir a uma delegacia localizada na Rua Aurora para que eu levasse alguns documentos ao delegado da primeira seccional. Após, eu deveria ir ao Fórum Criminal a fim de resolver as pendências de praxe. Tudo bem. Peguei os documentos e fui de metrô. A Rua Aurora encontra-se localizada no centro da cidade, próxima à estação República de metrô, próxima à Cracolândia. Claro que eu não sabia. Claro que eles mandaram a estagiária à Cracolândia. Bem que eu desconfiei que meu chefe queria me perguntar algo antes de sair do escritório. Deveria ser: “Você está armada? Não? Então pega essa faca!”
Peguei o metrô na estação Consolação e desci na estação República. Atravessei a Praça da República, observando aquela aparência normal do centro da cidade. Pedi informação. Disseram-me para virar à direita. Virei. Olhei para a placa: Rua Aurora. Pronto, achei. Comecei a andar, passo a passo a rua ficava mais estreita. Os prédios eram coloridos, havia imagens desenhadas em suas paredes, pixadas e grafitadas, e várias roupas penduradas nas janelas. Na frente deles, muita gente mal encarada me olhando. Eu, bem vestida, com pinta de quem teria dinheiro na bolsa e algo a se perder entre as pernas, destoando de tudo a minha volta. Apressei o passo. Andei, sem exagero, cinco quarteirões largos. A maldita delegacia não chegava, em contrapartida, a cada quarteirão o número de gente feia triplicava.
Cheguei. Avistei uma muvuca logo na porta de delegacia. Desviei, entrei. A delegacia estava lotada. Eu precisava descobrir em qual andar eu deveria ir, então tentei perguntar junto ao balcão do plantão. Só que no chão, na frente do balcão, havia umas quatro pessoas, com capuz, cobertor e aparência triste. Desisti. Encontrei o elevador, arrisquei um andar e subi. Primeiro fui ao quinto andar, depois no sexto, depois no sétimo, pronto. Sétimo andar. Encontrei o delegado. Não consegui entregar os documentos. O delegado recusou-se a recebê-los, afirmando que o “combinado era outro” e que o motoboy do meu escritório já havia inclusive resolvido. Sabe aquela sensação de inútil? Em caso de dúvida, mande o estagiário. Respirei fundo e desci. Quando cheguei ao térreo, comecei a ouvir gritos. Uma mulher estava berrando descontroladamente no meio da delagacia. Com ela, a muvuca que eu havia visto na porta da delegacia. Os policiais tentavam a expulsar, quando uma enorme muvuca de gente feia e mal encarada se formou. Quanto a mim, tratei de sair o mais rápido possível dali.
Quando sai, tive uma péssima sensação. Era como se todos os meus sentimentos bons tivessem deixando o meu ser. Uma parada meio Senhor dos Anéis, sabe, os Nazgûls? Eu estava amedrontada e doida para sumir dali. Encontrei duas guardinhas e perguntei: “Onde fica o metrô?” Elas: “Qual?” Eu: “Qualquer um!” Eu não voltaria pela Rua Aurora nem fodendo. Elas riram, mas indicaram-me o caminho. Agradeci e segui as orientações. Estava aguardando o sinal abrir, precisaria atravessar uma avenida movimentada e larga. O sinal abriu. Calmamente caminhei para o outro lado. Foi então que pisei e notei que meu pé esquerdo estava mais baixo que o direito. Notei que meu pé esquerdo encostava-se ao chão. Meu salto quebrou! Miraculosamente meu salto havia quebrado enquanto eu atravessadava a rua, pisando no asfalto, liso, reto, sem buraco algum. Ele simplesmente descolou-se da sola do meu sapato. Olhei para trás e vi meu salto perdido no meio da faixa de pedestres. O sinal abriu. Torci para que nenhum carro passasse em cima dele. Um quase pegou! Ui. Passou perto. O sinal fechou. Corri, peguei o salto e coloquei na bolsa.
Eu estava mancando, no meio da quebrada, com uma pilha de documentos nas mãos, então fiz o que qualquer pessoa sensata faria: comecei a chorar e rir ao mesmo tempo. Literalmente. Liguei para a minha chefe, contei a situação caótica na qual haviam me metido, então ela fez aquilo que eu a jamais vi fazendo: ela riu. Agora eu estava chorando, rindo, mancando, no meio da quebrada, com uma pilha de documentos e puta da vida. Minha chefe numa atitude altruísta, em vez de mandar outra pessoa realizar as pendências do fórum e me liberar, disse que eu poderia ir até a minha casa, trocar o sapato, para então ir ao fórum. Olha que boazinha. Só que minha casa fica do outro lado da cidade e o fórum fecha às 17h00 para estagiários, já eram 15h30.
Comecei a andar na ponta do pé esquerdo, a fim de disfarçar o desnível. Foi uma das atitudes mais vergonhosas pelas quais eu já passei. Peguei o metrô e corri até a minha casa o mais rápido que pude. Não tive dúvida: meti um All Star. Roupa social e All Star. Nice. Mas até que estava bonitinho. Corri para o fórum. Peguei novamente o metrô. 16h30. Faltava meia-hora e eu estava na estação Sé. Foi então quando ouvi soar: “Senhores passageiros. Estamos parados devido à presença de usuário na estação Praça da Árvore.” Puta que pariu. Nota mental: celular não funciona dentro da estação Sé, eu sequer poderia avisar minha chefe, além disso, provavelmente ela nunca acreditaria nessa história. Azar demais para uma só pessoa. No mínimo acharia que eu estava tentando dar um gato.
16h55. Cheguei! Corri para a entrada do Fórum Criminal. No meio do caminho, um rapaz bonitinho, com um skate ou algo parecido nas mãos, cabelo na altura do ombro, rosto estilo Jhonny Depp. Não costumo achar skatistas bonitos, mas esse era. Fixei o olhar. Ele olhou de volta e disse: Boa Tarde. Abri um sorriso, pensei em falar alguma coisa mas deixei quieto. Xavecar alguém dentro do fórum criminal é meio roubada, né? Com um skate na mão, com certeza não era advogado. Deveria ter ido assinar a condicional.
Terminei o serviço, 18h00 da tarde. Liguei para informar aos meus chefes e pedir autorização para ir embora para casa em vez de retornar ao escritório. Afinal, serviço mais do que cumprido, e comprido, diga-se de passagem. Deixaram-me ir, mas notei um certo tom de desconfiança por parte dos advogados. No dia seguinte, tomei aquela carcada. Queriam que eu fosse mais cedo ao fórum para sempre, em qualquer hipótese, retornar ao escritório, apenas por burocracia. Vai que o estagiário resolve parar para ir ao banheiro no meio do caminho e enforcar tempo. Onde já se viu. Mal sabem eles que eu fui de All Star ao Fórum e ainda saltitei pelos corredores entre as varas criminais, sem me importar para os policiais e cartorários que me olhavam.
Por essas e outras, sei que o que une a raça dos juristas não é o prazer pela escrita, ou pelo glamour de se vestir bem, tampouco a falta de senso de humor, visto que estagiários costumam ser bem-humorados e advogados adoram rir na sua cara. O que todos nós temos em comum é a chatice.
Como eu sempre gostei de escrever, quando eu era criança meus pais falavam que eu seria uma boa Jornalista. Meu pai é Jornalista. Eu nunca quis ser igual meu pai. Então faço Direito. Mentira. Eu faço Direito porque sou chata. Não há nada que eu goste mais de fazer do que provar que estou certa. Quer saber a forma mais fácil de me levar ao orgasmo? Diga-me: “Você está completamente certa”. Como eu adoro ouvir isso. Ainda mais se for depois de uma árdua e longa discussão. Cada um de nós, juristas, tem a sua chatice peculiar.
Cabe destacar que não são apenas, nem todos, os advogados que são arrogantes e se acham “os” profissionais. Isso acontece em inúmeras profissões. É comum achar quem se ache “o” jornalista, ”o” publicitário, “o” programador, etc. Só que o peculiar da carreira jurídica é que antes mesmo de se formarem, os alunos se acham “os” advogados, “os” juízes, “os” promotores… Mas não são nada disso, são apenas chatos! No máximo servem de bobo da corte para seus patrões. São majoritariamente politicamente corretos, moralistas e tradicionalistas. Ou seja, chatos. No meu caso, sou chata, não nego, mas não me acho “a” advogada, “a” promotora ou “a” juíza, mas com toda certeza sou “a” azarada.