A vingança do sapato
A minha viagem ao Québec começou em Bauru. Não exatamente a “viagem” (que essa começara pouco mais de uma hora antes, em Marília), mas – a viagem. Pois toda “viagem” tem uma viagem por trás. E é por conta dela que a coisa vai além do esperado...
Um dia antes, entre as últimas providências, a escolha do calçado. Resolvera ir e ficar com um só, o tempo todo. Às voltas com o temor do frio canadense, mesmo no início do outono, pensara num par de botas, apropriadas para a temperatura, também para a ocasião. Chiques e quentinhas. Ou então os sapatos pretos ainda pouco batidos, menos quentes mas igualmente adequados. Um ou outro, seria preciso engraxar o escolhido. Já meio tarde e com muito a fazer, optei pelo menor esforço.
Na manhã seguinte, sapatos lustrados, volta e meia olhava e conferia o brilho. Que devia durar sete dias! (ao menos cinco) Definitivamente, eu caprichara no lustro! Rumo à Capital, o ônibus seguia viagem.
Lá pelas 10:50, entretido com a leitura do ótimo Eu, primata, percebo que entramos pelas instalações do “Sem limites”, ponto de parada do “Expresso de Prata” para as viagens iniciadas na Alta Paulista (e era o caso, boa parte dos passageiros tendo embarcado em Tupi, de onde saíram às 5:30). Pra não ficar com vontade na hora errada, fui eu também ao banheiro. Sempre preocupado com o brilho periférico e com não pisar no testemunho líqüido de quem me precedera naquele recesso-de-privacidade-momentânea, tratei de afastar as pernas, mantendo-as no limite do compartimento em questão ou na área limítrofe dos cubículos adjacentes. Mal iniciara a função, dei pela entrada de alguém no da esquerda. Ao contrário de mim, porém, o confinante parecia ter muita precisão de lavar a égua, esbaforido que estava. E não é que o “sujeito escatológico” ao lado, na ânsia de saciar-se, erra o alvo e acerta no – lustro do meu sapato!? O prejuízo acabou compartilhado, pois, ouvindo o meu sonoro palavrão, o fulano, que mal começara a desafogar-se, saiu correndo banheiro afora, decerto respingando-se. Que fazer? Voltei aos chimpanzés e bonobos do livro de Frans de Waal.
Bem mais à frente, já por volta das 22:00, na lotada, barulhenta, comprimida “econômica” do 767-300 da Air Canada que me levaria a Toronto, achava-me na poltrona “20 A”, lado direito da aeronave, corredor, ninguém ao lado. Sem bagagem de mão, assistia ao frenesi dos patrícios (cariocas, quase sempre), disputando espaço no compartimento de bagagem acima dos assentos (imagine-se a viagem de volta... ). Essas divisões (ao menos no modelo em questão) acomodam 30 kg. Mas o esforço de boa parte dos viajantes ao levantar o peso da própria bagagem fazia supor ao menos uns 20 kg por passageiro... Nada disso me abalava, porém. Revistinha de bordo em mãos, imaginava se teria de arranhar o inglês ou desenferrujar o francês com quem estivesse à janelinha pelas quase dez horas de viagem previstas.
Aproxima-se uma jovem. Olha pra mim, depois pro assento vago, tornando claro que a janela é sua. Branca como ela só, olheiras profundas e um olhar entre o triste e o muito-triste, quase um espectro. Em vez de aguardar que eu me levantasse, para então passar, ela meio que avança, desatinada, quando eu já me erguia pra lhe dar passagem. Pior do que nos trombarmos os dois foi eu ter depositado os meus 85 kg sobre os pés da criatura! Muito pior ela estar com sandálias de dedo!! Verdadeiramente catastrófico aquele fantasma ambulante ostentar os dois dedões inchados, enfaixados com gaze e – purgando!!! (agora mais... ) As poucas forças que lhe restavam permitiram-lhe, ainda assim – gritar! Já me vi expulso do avião por uma brigada carioca-canadense. Acorreram três comissárias, imediatamente amparando a vítima, olhando para mim por sobre ela, pois eu já estava novamente sentado (na verdade, procurava o colete salva-vidas, desejando que estivéssemos sobre o “triângulo das Bermudas”... ). Uma das comissárias, fitando os pés da moça, pareceu dar-se conta do ocorrido, dizendo-lhe:
“ – Oh my God! Are you OK? Really?”...
Eu, levantando-me, só tive o tempo de balbuciar um embaraçadíssimo: “ – I really sorry!... ” Ao que a moça, percebendo o meu sotaque (ou o português da capa do livro), retrucou (soluçando): “ – Tudo bem, tudo bem... Pode deixar... ” No dia anterior, com as unhas encravadas, ela fora a uma pedicure (queria viajar sem dor... ). Mas a profissional piorara a situação, o que a levara, horas antes, ao pronto-socorro do Aeroporto de Cumbica...
Por via das dúvidas, a mineira Natália não se levantou até Toronto, tendo ficado o tempo todo (dez-horas-e-dez-minutos!) com os dois pés sobre o assento da sua poltrona. Completamente sem-jeito, senti-me o próprio – primata. No máximo, o “elo perdido”.
Ainda bem que não optei pelas botas.