Casa da Vovó.
Casa da Vovó.
Ali era meu paraíso.
Vovó parecia uma santa. Seus olhos azuis como o céu, davam-lhe um toque todo especial de beleza exótica, combinando com sua pele alva e seus cabelos castanhos escuros.
Falava mansinho e nunca reclamava das traquinagens dos netos, por mais atrapalhadas que fizessem. Apenas dizia para que tivéssemos cuidado e fossemos menos barulhentos.
Algumas vezes ela sentava-se no sofá da sala para fazer crochê e permitia que eu brincasse com um barquinho feito de chifre de boi que servia de enfeite na mesa de centro da sala. Passava um bom tempo brincando com aquele lindo enfeite.
Eu tinha uma verdadeira adoração por ela, e ainda tenho este sentimento guardado aqui dentro de mim.
Muitas vezes, timidamente me aproximava dela e beijava-lhe a face. Era um carinho que eu gostava de lhe fazer e sentia que ela gostava, pois sempre via seus olhos brilharem a cada beijo que recebia de mim. Sorria docemente e beijava-me a testa agradecida pelo carinho recebido.
Meu avô era muito sério e de poucas palavras. Com 1.80m de altura e corpo atlético, cabelos curtos e grisalhos, olhos castanhos escuros, com um andar cadenciado parecendo medir cada passada.
Ele tinha uma fábrica de gelo que abastecia toda a cidade, além de um escritório de representações de querosene e biscoitos. Eu lembro muito bem das marcas. O querosene era Jacaré e os biscoitos Aymoré.
Naquela época não existia geladeira elétrica e as poucas que existiam funcionavam a querosene. O calor gerado por uma pequena chama alimentada pelo querosene, aquecia a serpentina e fazia o gás circular. E como gelava rápido! Com o custo atual da energia elétrica, deviam trazer de volta este sistema de refrigeração.
O fundo do terreno da casa de meus avós era dividido em duas partes, com acesso pela rua de trás. Uma das partes servia de venda de gelo a pequenos consumidores, e o gelo era estocado num grande depósito térmico que dava para uma criança como eu andar em pé dentro dele. O piso deste depósito era forrado de serragens. Estava sempre úmido e frio.
A outra parte, pouco mais ao lado, ficava a estribaria, onde a carroça de transporte de gelo e a mula que ficavam recolhidas ao final de cada dia.
Ali eu me achava num pedaço do meu pequeno e encantado mundo. Isso, porque todas as tardes, aproximadamente às 13 horas, três sorveteiros iam bater o sorvete de forma artesanal apegado ao depósito térmico. Quando acabavam, disputava com meus primos a palheta da sorveteira. A que mais eu gostava era a do “seu” Chico do Chocolate. Ele fazia um sorvete de chocolate que era uma delícia. Precisavam ver nossa paciência aguardando os sorvetes ficarem prontos. Quando eles acabavam, raspavam a palheta de bater o sorvete, mas sempre deixam um pouquinho para que saboreássemos. Naturalmente que ficávamos todos lambuzados. Aquilo era um sonho.
Mais tarde tinha o lanche na copa da vovó. De segunda a sexta-feira, nossas tias apareciam para fazerem o lanche da tarde. Claro que seus filhos também queriam um pouquinho daquelas guloseimas.
Eu ficava olhando cada prato na mesa antes de me decidir a atacar. Bolo de laranja, bolo de chocolate com cobertura, bolo de coma de caroço, tapioca molhada no leite de coco, cuscuz de arroz (pisado no pilão e não massa como é hoje), pamonha de coma. Algumas vezes, quando era época da safra de milho, ela fazia um bolo de milho verde. Uma delicia que nos dias de hoje renderia uma boa grana. Aquele bolo de milho era o manjá dos deuses.
Vovó era mesmo uma santa. Só em nos aturar, já era pra merecer sua morada no céu.
Um dia, na época do caju, depois de ter com a Maria “carrapêta” - uma menina que ela criava - assado uma boa quantidade de castanhas de caju que depois ela levou-as a um melaço para torná-las açucaradas. Colocou as benditas castanhas açucaradas numa compoteira de vidro em cima da cristaleira (um móvel onde se guarda cristais). Não medimos cerimônia. Deixamos a compoteira pela metade.
Aquela casa era realmente meu paraíso. Tinha uma avó linda que parecia uma fada, as mais deliciosas guloseimas que uma criança poderia desejar e ainda por cima, bastante espaço para nossas traquinagens.
Eu só não gostava muito de um dos meus tios solteirões. Na verdade eram os dois filhos ainda que moravam com meus avós. Os dois faziam exercícios diários nas barras e com outros aparelhos, e por isso tinham um físico de causar inveja a muitos homens da cidade. O mais velho era bem alto. O caçula era mais baixo e mais ranzinza. Estava sempre com a cara de quem acordou de pé esquerdo. Era deste que eu não gostava muito. Preferia o mais velho porque era mais atencioso e aos sábados, pedia para eu lavar sua moto e me dava uma gorda gorjeta. Era uma moto Índia de cor vermelha. Para mim a moto mais linda que já vi. Quando chegava o sábado, algumas vezes o amigo dele aparecia com sua moto Harley-Davidson preta pra eu lavar também. Muito bonita, mas preferia a Índia do meu tio. O ronco do motor parecia um trovão.
Nestas ocasiões eu faturava bem e tinha dinheiro pra gastar na feirinha na frente da igreja de Santo Antonio.
Aqueles foram sem dúvida os melhores dias de minha infância, que desmoronou quando eu tinha oito anos. Minha amada avó havia falecido inesperadamente. Chorei esta perda sozinho sentado no meio fio da calçada de sua casa.
Saudades.
Carlos Neves.