O Personagem

O Personagem

suzabarbi@hotmail.com

Sentiu uma dorzinha no peito e foi ao médico.

– Você fuma?

– Fumo

– Quantos cigarros por dia?

– O senhor quer dizer quantos maços, né?

– Não. Quero dizer quantos cigarros.

– Deixa ver...vinte vezes quatro... sabe doutor, nunca fui muito bom de conta.

– Oitenta! Você está me dizendo que fuma oitenta cigarros por dia?

– Da Souza Cruz, sim.

– Bebe?

– Bebo.

– Socialmente?

– Não. Industrialmente.

– Faz algum exercício físico?

– Não tenho carro e mudar de bar umas oito vezes por noite dá uma caminhada que eu vou te falar, viu?

– Faz uso de algum medicamento?

– Rivotril, na falta dele, Lexotan e uns Inibex, de vez em quando, sabe como é, pra ligar.

– Rapaz, você tem a dimensão do estrago que esse coquetel pode te fazer?

– Você é que não sabe o que os meus amigos tomam...

– Por favor, não me conte.

– Por falar em coquetel, o senhor já experimentou um que se faz com gin e tequila?

– Mas são duas bebidas fortíssimas!

– Que nada. Faz o seguinte: bate duas doses de gin com duas de tequila numa coqueteleira. Na falta de uma, não precisa de frescura não: coloca tudo num copo, tampa com a mão e dana a sacudir. Depois de bem batido, coloca uma dose e meia de vodka. Serve num copo bem comprido com uma azeitona dentro.

– Mas não fica forte demais não?

– Que nada, doutor. Mais fraco do que pinga. O segredo é a azeitona. A azeitona puxa o excesso do álcool. Fica tudinho nela.

– Então não pode comer a azeitona?

– Claro que pode! O bom da coisa está é aí. Depois de beber o drink, come-se a azeitona.

– E cai duro no chão?!?

– Cai nada, doutor. Na mesa já está servido o “Rastreador”.

– E o que é o “Rastreador”?

– O drink que vai atrás da azeitona, ué.

– Ah! Deixa ver se eu entendi: depois que eu como a azeitona, tomo um outro drink que vai caçar, digamos assim, a azeitona?

– O senhor já comeu a azeitona desse drink?

– Eu não!

– Mas o senhor acabou de falar que comeu e que tomou o Rastreador!

– Eu não!

– Falou! Falou sim!

– Eu nem sei que drink é esse!

– Pode se abrir comigo, doutor. Sou um verdadeiro túmulo. Aquilo que as pessoas me contam, não falo nem em sonho.

– Por que? Você fala dormindo?

– Ih! Se falo!

– É casado?

– Sou.

– Fiel?

– Hum... mais ou menos.

– O que é ser fiel mais ou menos?

– Não pode estar sóbrio. Se tiver, é traição

– Então quer dizer que você sai com moças quando está ébrio?

– Não, doutor. Saio com moços.

– Não entendi. Você não me disse que era casado?

– Sou.

– E sai com moços?

– Saio.

– Então você é homossexual?

– Não. Sou panssexual.

– Como assim, “panssexual”?

– Eu gosto da alma, não da pessoa. Quando levo a alma para a cama é que vou saber qual o sexo que ela tem. Não sei porquê, mas ultimamente as almas que tenho gostado são todas do sexo masculino.

– Tá bom! Tá bom! Melhor mudar de assunto. Já sentiu-se mal após beber?

– Já. Quando era mais novo não. Mas depois de certa idade, sabe como é, a gente não tem ressaca mais não. A gente adoece.

– Não estou falando de ter ou não ter ressaca. Estou perguntando sobre sentir-se mal.

– Pois então, estou falando em adoecer. Um dia acordei, meu corpo saiu da cama e minha cabeça ficou lá. Isso não é adoecer?

– E o que você faz numa situação dessas?

– Tomo toda a água que tem na casa, inclusive a do chuveiro.

– E aí?

– Quando não tem mais água para tomar, li que chupar chuchu é muito bom. Tenho sempre uma reserva na geladeira.

– E quando você está num lugar que não tem onde comprar cigarro e o seu acabou?

– Antes de começar a pensar em suicídio, pesquiso as possibilidades da casa.

– Como assim?

– A gente se vira com o que tem. A última vez que isso aconteceu, fumei orégano. Afora o cheiro de pizza que a casa ficou, o gosto até que era bom.

Depois que o paciente saiu, o médico tomou dez gotas de Rivotril, um comprimido de Lexotan e pensou seriamente no Inibex, só pra dar uma ligadinha.