Vanessa e o cão
O interfone soara. Normalmente, passaria adiante a tarefa de dispensar o estorvo. Mas, naquela manhã, a coisa não andava. Dormira mal, esquecera de comprar leite e o alemão do texto em gótico não me era nem um pouco familiar. Nikolaus Tetens que esperasse. Voz feminina. Delicada, gentil, mesmo que ensaiadamente delicada-e-gentil. “Bom dia! Chamo-me Maria Luísa.” E já me chamou a atenção a ênclise. Bem melhor do que a sem-cerimônia do: “Tudo bem!? Aqui é a fulana de tal.” Não gosto.
Como a coisa não andava, andei. Acedi à solicitação (“Posso lhe falar um instante?”). Ao descer a escada “pé-sim, pé-não”, pensava em por que o Bóris não latira. Por via das dúvidas, olhei pelo olho mágico. É claro que algumas opções tinham-se descartado. Não esperava uma candidata a empregada doméstica nem uma pré-adolescente de escola pública com rifa para o “Dia das Bruxas”.
Não sei se enxergava bem, mas via um perfil conspicuamente british, very british à minha porta – talvez too much british para aquele confim entre rural e urbano marilienses, às dez-e-alguma-coisa-de-uma-terça-qualquer-de-outubro. Mas a confirmação da perspectiva mágica apontou-me Vanessa Redgrave em Julia, no esplendor dos seus quarenta anos (e em meus incipientes dezessete). Já não me lembro se havia cena em que, portando chapéu, ela pedalasse em campo aberto entre flores e sorrisos. O fato é que, se “Vanessa Redgrave” batia à minha porta, eu tinha todo o direito de vê-la assim, pedalando-em-campo-aberto-entre-flores-e-sorrisos.
Well, well, well... Sim: de fato, uma quarentona bem-apanhada. Sorria tanto quanto falava, e falava bem. Alta, com chapéu, a saia à altura dos joelhos não lhe estava mal. Sem bicicleta à vista, tinha olhos azuis, rosto afilado, cabelos sem pintura aparente, castanhos e ondulados. Na blusa florida, mangas levemente bufantes. Sem pressa nem querendo entrar, Vanessa tupiniquim desempenhava o seu papel.
Enquanto se reapresentava e dizia a que vinha, lembrei-me de quando havia placas ao lado das portas das casas, que identificavam a profissão do – morador-mor. Com fundo branco e inscrição em preto ou azul, nelas se lia “Advogado” ou “Médico”. Sempre um “Doutor”. Nunca vi plaquinha de outro profissional. É claro que eu jamais poria algo assim na fachada de casa: “Professor Doutor De Azevedo Marques. Filósofo.” Se fosse o caso, melhor, então: “Oca consultiva do murumuxaua Ubirajara”.
Mas Vanessa de araque deve ter pressentido a ocupação do habitante, pois, certeira, indagou: “Você quer conhecer a Verdade!?”... Escrúpulo presente, não pude negá-lo. Pruridos à parte, despachei-a.
Já o cão, sempre quieto, é – desconfio – evangélico.