Angola - O jardim dos Anjos - Sobreviver à Guerra

No ano do nascimento da minha segunda filha decidi inscrever-me na Universidade Independente de Angola. O curso foi a decisão mais lógica, principalmente para um cidadão que não contava com a faculdade para ter carreira. A carreira estava feita. Uma manta de retalhos de expectativas, bordada a desculpas muito, mesmo muito, mal justificadas.

Curso de Ciências da Comunicação, regime nocturno.

Era óbvia a mescla de bons rapazes e raparigas que se iriam encontrar todos os dias, durante semanas alguns, meses outros e anos muito poucos.

O país acabado de aprender a escrever PAZ e já estávamos todos a saltar das trincheiras, esfarrapando as fardas de um regime difícil de explicar e pegando na oportunidade como quem pega numa arma magnífica, imponente: Arma de Construção Massiva – Educação.

A idade não era para aqui chamada.

Todos nós tínhamos em comum o entusiasmo de estudarmos com sacrifício pessoal acentuado. Quase todos chefes de família, alguns desempregados e outros a agarrarem uma chance única de poderem estudar na faculdade.

Entre a turma encontrei jornalistas de renome, mas sem diploma, alguns artistas que queriam sustentar o fraco nome com academia. Havia uma dona de casa que dava conselhos a toda a hora e nós pensávamos nela como a nossa mãe académica.

Mas todos sabíamos que éramos refugiados de uma geração perdida, queimada e só estudávamos para sabermos, para termos a certeza, no fundo do nosso coração, que havíamos todos saído vencedores dessa guerra.

Entre nós havia um oficial da Policia de Intervenção Rápida da Policia Nacional, jovem para os seus 28 anos, negro e dono de um corpo impressionante, um verdadeiro gigante. Modos militares e expressão mecânica.

Era sempre o último a chegar à primeira aula e jamais saía da sala destinada à nossa turma durante os intervalos.

Todos sabíamos o nome dele. Ninguém escondia que era melhor ser amigo daquele cavalheiro do que inimigo. Alguns afirmavam a rir que não tinha inimigos por já os ter despachado todos.

E assim, semana a semana, víamos o nosso colega gigante a chegar atrasado e a pedir desculpas com os olhos, ao professor e aos colegas, pelo atraso.

Num certo dia aconteceu o inesperado. À chegada do nosso oficial, sempre um pouco embaraçada pelas pernas mal caberem na pequena secretária que era o seu lugar, o professor dirigiu-se a ele com voz grave e sem esperar resposta:

- Quem você julga que é para se apresentar armado e fardado dentro da universidade? Se julga que mete muito medo, fique a saber que você é que devia ter medo de mim!

O jovem gigante fitou o chão durante algum tempo.

O professor continuou:

- Não posso permitir que venha armado e fardado para as minhas aulas, ouviu? – O silêncio dominava a turma.

O jovem levantou o braço e disse como se estivesse na 1ª classe:

- Professor, posso responder?

Perante a humildade daquele homem imponente o professor assentiu.

- Sabe, professor, para vir às aulas eu tenho sempre que contar com colegas que me substituam. Apesar de sempre contar com essa ajuda, é impossível ir a casa tirar a farda por causa do horário e do trânsito, e se deixar a farda na Unidade pode desaparecer. Quanto à arma é a mesma coisa, mas pior, porque se eu for chamado e me apresentar ao serviço desarmado, vou preso; se deixo a arma no carro enquanto venho estudar e me assaltarem o carro, vou preso; se entro na aula com arma ofendo-o e assusto os colegas, sinto-me preso.

O meu pedido para que a Policia Nacional me desse esta bolsa de estudo é tão antigo que não quis arriscar perder esta chance ao ponto de vir para um curso que não quero. Por isso, professor, a única pergunta que me fez que não consigo responder é a tal de quem eu julgo que sou, mas essa, professor, talvez seja mesmo para não responder.

O professor, que era muito dado a escutar a própria voz, ficou sem vontade nenhuma de responder.

Então, um nosso colega, disse como sentença:

- Eu cá não me importo nada que ele traga a arma e venha fardado, no final de contas é um polícia.

Outros disseram que tinham familiares militares e que já nem ligavam. Outros convidaram-no a sentar-se mais próximo deles para trocarem apontamentos.

Eu pensei: - Este jovem é bem maior do que aparenta e bem mais corajoso do que nós pensamos…