Exceção
Metade de mim constitui a pessoa séria, racional e um pouco ranzinza que sou. Aquela que adora tomar café da manhã enquanto discute Política, Religião, Filosofia, Direito, Antropologia, Sociologia, Cinema, Arte ou qualquer outro assunto que possa contribuir para meu crescimento pessoal bem como garantir-me horas do mais requintado entretenimento.
Momentos estes que constituem não apenas monólogos do conhecimento, mais do que isso, ocorre uma real e importantíssima troca de informações na qual os dois indivíduos acrescentam e absorvem os temas discutidos. A maravilhosa sensação de encontrar pessoas que além de somar para o nosso desenvolvimento são capazes de até nos indicar palavras que melhor demonstrariam o que queremos dizer.
Como naquelas horas em que seu vocabulário falha, você não consegue encontrar um termo adequado para expressar-se, eis então que a pessoa ao seu lado aparece com a mais adequada e perfeita possível das palavras. Nesse instante você sente a deliciosa satisfação de quem foi finalmente compreendido, e mais, percebe que ambos partilham do mesmo sentimento e tem muito que conversar.
Por outro lado, minha outra metade está satisfeita em derreter-se pelas coisas mais simples e despretensiosas da vida. Momentos e sensações que não existem por uma determinada razão e sequer vão nos levar a lugar algum. A importância destes é exaurida em sua mera execução, o prazer de desfrutar daquele momento é o que o torna especial.
Como, por exemplo, ouvir o barulho da chuva em uma manhã cinzenta, após passar uma longa noite em claro, ao som da versão Jazz de “Layla” do Eric Clapton, terminando com a maravilhosa ”Riders on the Storm” da magnífica banda-arte chamada The Doors, enquanto seus pensamentos se perdem em algum lugar do passado.
São aquelas sensações que pertencem somente a você, são tão pequenas que se perderiam se tentasse compartilhá-las com outrem, tendo em vista que traduzi-las em palavras seria tão difícil que prefere mantê-las em segredo, apenas dentro de si.
Outra faceta deste meu lado mais emocional é aquela que me faz gostar de estar rodeada de pessoas atraentes, porém não fúteis; pessoas virtuosas, pessoas que são consideradas boas naquilo que mais gostam de fazer.
Gosto também da idéia de me sentir sexy, bonita e desejada, sem que para isso tenha que desassociar a idéia de mulher inteligente, por mais que a sociedade lute para estipular o contrário e lotar de preconceito e machismo as opiniões alheias.
Essa percepção sobre minha personalidade multifacetada me fez voltar à época do colégio, mais precisamente ao 2º ano do Ensino Médio da Escola Técnica Federal de São Paulo. E é sobre isso que vou contar a vocês.
Peculiarmente, a Escola Técnica Federal de São Paulo possuía uma forma diferente de dividir suas turmas. Por exemplo, em vez de separar os primeiros anistas por letras (1ºA, 1ºB, 1ºC, etc.) o método adotado era criar um projeto tema diferente para cada turma do primeiro ano. Esse projeto era uma aula especial que só os alunos daquela turma iriam assistir.
Em 2004, cursava o 2º ano do colegial na turma 202, cujo projeto era intitulado “Teatro e Música”. Acontece que os alunos que faziam parte dessa sala haviam pertencido, no ano anterior, às antigas turmas 101 e 104. A sala encontrava-se dividida por àqueles que haviam vindo da sala 101 e por aqueles que eram da 104.
A sala 101, cujo projeto era “Formação de Repertório”, foi uma sala composta basicamente por futuros escritores, poetas, cronistas e pessoas que de uma forma geral apreciavam a arte da escrita. Em sua maioria eram pessoas cultas e impopulares. Normalmente gostavam de rock, política e literatura. Todavia, eu adorava as pessoas desta sala e passava boa parte do meu tempo com elas, dentro e fora da escola.
Já a sala 104, no caso a minha antiga sala, cujo projeto era “Corpo, Comportamento e Sexualidade”, ficou popularmente conhecida como a ”Turma do Sexo”. Foi uma turma composta por playboys e patricinhas e, além disso, era a classe com o maior número de mulheres do primeiro ano matutino.
Os caras eram fanfarrões e engraçadinhos, as garotas eram bonitinhas e simpáticas. O cara mais desejado da turma era um ser loiro, alto, com a cara cheia de espinha, que apesar de ser inteligente fazia um puta esforço para agir feito um mongol e eu o chamei de engraçadinho por pura bondade. Algum tempo depois fui descobrir que ele não ia muito com a minha cara porque, teoricamente, eu era a cara da ex-namorada dele.
Agora que as devidas apresentações foram feitas, os perfis foram traçados, vamos voltar ao segundo ano.
Imaginem o seguinte caos estudantil: a sala 202 unia o típico jovem culto e metido à intelectual (101) com os jovens populares e bonitões (104). Todos os alunos eram provenientes destas duas salas, 101 e 104, com a exceção de um jovem que respondia pela alcunha de Baltazar. Esse ser infeliz veio da turma do projeto de “Xadrez”, o que dispensa comentários, obviamente a turma de Xadrez reunia os maiores nerds e cabaços da escola.
Baltazar era baixinho, troncudo, dono de um invejável bronzeado fantasma e claro, muito, mas muito narigudo. Vestia-se conforme a mais refinada moda da Pensilvânia: capas, coturnos, calças jeans pretas e justas. Nas mãos, brancas e gordas, ostentava o feito de possuir um anel diferente por dedo. Daqueles anéis feitos de metal em formato de caveira que você pode facilmente encontrar nas lojas mais posers da Galeria do Rock.
A sala estava se dando relativamente bem, salvo as diferenças culturais, até que o jovem Baltazar, que além de ser uma criatura do inferno era insuportavelmente mala e folgado, resolveu importunar todos os alunos da classe e os playboys, como era de se esperar, não gostaram muito da idéia.
A verdade é que nem a panela do pessoal culto e intelectual gostava muito do pobre Baltazar, mas com certeza eles gostavam menos ainda dos playboys. Eis então que se iniciou uma espécie de guerra entre as duas panelas.
Sinceramente, adorava meus amigos cultos e futuros escritores porque, dentre outras coisas, eu também gostava de escrever e me identificava muito mais com essas pessoas mais “estranhas” do que com os playboys da minha sala.
Entretanto, eu simplesmente não suportava o tal do Baltazar e no tocante ao mérito da briga devo confessar que o Baltazar estava completamente errado e ficaria feliz em vê-lo levar um coro dos playboys. Além disso, os playboys e as patricinhas eram legais e eu conseguia me divertir com eles também. O problema foi que os playboys compraram briga com toda a panela oposta, não apenas com o Baltazar.
Até o ponto em que estavam importunando apenas o Baltazar, tudo bem. Só que a situação ficou crítica quando mexeram com um rapaz extremamente adorado por nós, o Tadeu. Caçula da turma, com apenas 13 anos era dotado de uma inteligência invejável e era certamente a pessoa com o melhor coração dentre todos nós. Quiçá o único que poderíamos chamar de inocente.
Nessa altura da briga surge, em defesa do Tadeu, um cara chamado Pedro, seguramente meu melhor amigo na época.
Nós três éramos companheiros fiéis, sempre estávamos um na casa do outro, passando noites conversando sobre nossas vidas e sobre qualquer assunto que nossas mentes chegassem. Passávamos noites em praças públicas, bebendo, compartilhando informações confidenciais. Que tipo de adolescente conversa sobre literatura, filosofia e política quando está bêbado? Fazem parte daquelas memórias insólitas, porém inesquecíveis da nossa adolescência.
Pedro era fanático por HQs (Histórias em Quadrinho), especialmente pelo Homem Aranha, afinal, ele era o próprio Peter Parker.
Pedro era magro, de estatura média e seu cabelo escuro ondulado raramente encontrava-se com a escova. Normalmente usava uma calça jeans surrada com alguma camiseta simpática como estampas divertidas que quase sempre enalteciam algo politicamente incorreto, ou então, camisetas de banda de rock, camisetas de super heróis ou então a boa e velha camiseta preta.
Nos pés, algo que só ele chamava de tênis e o estado peculiar em que este se encontrava lhe rendeu o título de admirável porco aranha.
De fato, nosso Peter Parker atropelado e cuspido era muitíssimo adorado por todos nós por suas qualidades diferenciais, tão raras em seres humanos da nossa faixa etária.
Com toda certeza nunca irei me esquecer da frase marcante, uma das primeiras que ele me disse quando estávamos nos conhecendo. Imaginem a cena:
Estávamos nós, vadios e tristes, deitados sobre a rampa do Centro Cultural Vergueiro, lugar onde usualmente nós jogávamos RPG, quando em algum ponto da conversa ouço a seguinte frase:
- Nossa! Você é a primeira pessoa que eu conheço que é tão amarga quanto eu.
Dois lobos solitários encontravam-se por breves instantes. A sensação de encontrar alguém que já havia apanhado tanto da vida quanto você, nossos inúmeros problemas familiares em comum, as inúmeras responsabilidades que faziam com que a sensação de carregar o mundo nas costas já fizesse parte do cotidiano.
Posso dizer que nós dois éramos espécies de exceções. No mundo em que metade da sala estava preocupada em parecer inteligente e a outra metade em parecer popular, nós dois apenas nos preocupávamos em não precisarmos nos preocupar. A nossa ótica era outra, nossa mão já estava cheia de calos e quase nada nos botava medo.
Na prática, o Pedro acabou comprando a briga do Tadeu, conseqüentemente a do Baltazar por tabela, porém, ele só o fez pelo sentido máximo da palavra amizade. Quando a sua vida nunca fez o menor sentido, o que é se meter em mais uma confusão? Quando não se tem família, nossos amigos são tudo pelo que vale a pena lutar.
No final das contas, como quase toda briga adolescente, não aconteceu nada demais. Depois de uma série de atritos cada panela ficou em seu canto e eu continuei sendo colega da turma dos playboys e amiga dos feios, cultos e impopulares. Essa época foi importantíssima para me apresentar a diferença entre coleguismo e amizade.
Não precisei virar a cara para ninguém, apenas os tratei como eles deveriam ser tratados: como colegas. À medida que eles criticavam o Baltazar, eu ria junto. Quando ultrapassavam essa esfera e partiam para os outros alunos da panela oposta, como o injustiçado Tadeu, pois com o Pedro ninguém era doido de mexer, eu os repreendia.
Hoje em dia estudo no Mackenzie e convivo diariamente com não apenas uma panela, mas com uma sala inteira composta por playboys e patricinhas. Os garotos são fanfarrões e engraçadinhos e as garotas são bonitinhas e simpáticas. O cara mais desejado da sala, bom vocês sabem.
A minha capacidade para lidar com mongóis encontra-se gradualmente mais prejudicada, cada vez mais sinto que um dia irei mandar as regras do coleguismo para os ares e falar umas verdades para aqueles que nada conhecem da vida.
Invariavelmente, percebo que novamente sou exceção. Sempre estudei em escola pública, nunca fiz cursinho, trabalho desde os 15 anos de idade e coleciono transtornos familiares e pessoais. Todavia, estudo Direito na faculdade Mackenzie, sou bolsista, sento-me bem ao lado dos pequenos burgueses de São Paulo e com eles disputo os mesmos empregos.
Tirando o fato de que sou obrigada a ouvir um monte de baboseira todos os dias [vide: Eu li na Veja! Eu manjo!] daquele tipo de aberração que só poderia permear a mente de um playboy, posso dizer que já me acostumei em ser dispare à regra. E se eles têm dinheiro, eu tenho garra.
Se formos analisar meus amigos, iremos perceber que são pessoas consideradas exceções dentre um contexto específico.
Seja por serem bonitos e inteligentes, ricos e humildes, inteligentes e modestos, ou por qualquer outra razão que faça com que eles sejam diferentes do que esperam deles.
Graças à minha personalidade multifacetada, quando esperam que eu cite Nietzsche, e eu sei que o faria com propriedade, acho bem mais legal fugir à regra e soltar alguma frase bem sórdida enquanto deliciosamente observo a cara de espanto daqueles que me ouvem.
Todas essas pessoas consideradas exceções compartilham de um mesmo sentimento: todos nós gostaríamos de sermos aceitos por nossos semelhantes, somos seres humanos e gostamos de receber aprovação.
Precisamos uns dos outros, sobretudo dos amigos que são capazes de admirar nossa essência virtuosa e se identificar conosco, já que a sociedade não o faz. No final das contas, somos exceções perante a sociedade, mas ainda somos iguais a todo mundo.