Angola - O jardim dos anjos
Esta história tem como pedra basilar uma época que quando tudo começou eu ainda não era vivo, pelo que peço perdão antecipado por aquilo que, por exagero ou omissão, assim me foi contado.
Vivia-se, então, o colonialismo português. Cidades prósperas e alegres, urbanizadas para a frente, como quem diz, para que os que viessem tivessem espaço para que o império florescesse, crescesse e, sem dúvida, imperasse. Estradas e caminhos de ferro a rasgarem o território de norte a sul, fábricas a produzirem como se fossem tecidos vivos, autónomos, terrenos imensos e inexplicavelmente grandes a darem fruto, como uma grande e generosa mãe.
Estávamos nós no ano longínquo de 1961.
Para quem não saiba, Angola não era só Angola: - Era a Jóia da coroa portuguesa em África. Exportava café, cana de açucar, hortícolas, sizal e tudo o que se possa imaginar.
Vivia-se próspera, sincera e confortavelmente, tanto na capital como nas inúmeras cidades e vilas angolanas.
Reparem que não ressalvo nem cores nem credos. Vivia-se e ponto final.
Os miúdos estudavam, pretos e brancos, os graúdos trabalhavam, pretos e brancos, as mulheres casavam e eram férteis, pretas e brancas. No fim, para esclarecer o ambiente de ternura e amor : Angola tinha ainda os mulatos e cabritos, lindos como se tivessem simplesmente recolhido o bom, o cheiroso e o inteligente das duas raças puras. Nasceu nessa altura a insondável beleza de ser angolano. Comuns a todos os que os rodeavam, iguais a uns e a outros, mas desta vez, mais belos, mais definidos, como se tivesse nascido uma outra raça, esta sim, catalizadora das duas, nascida do ventre das duas, à frente dos olhos das duas.
A juventude não escapava para França, não media a vida pelo tamanho do seu nariz.
Os rapazes portugueses que vinham cá “fazer a guerra” eram surpreendidos por uma alegria de viver a que não estavam habituados. Encontravam uma gente diferente que os acolhia com amizade e carinho, oferecendo um país cheio de belezas tropicais e sensualidade. Quantos se entregaram e se perderam nos bares e festas de Luanda, Nova Lisboa, Lobito, Benguela, etc. Vinham para cá comer banana pela primeira vez. Muitos deles chegaram a manchar a sua imagem de tenebrosos guerreiros ao sucumbirem às maleitas intestinais provocadas pela quantidade desmedida de maboques, tambarinos, cajús e tantos outros frutos exóticos. Nem sempre o que o espírito anseia o corpo respeita.
Mas as mulheres, por Deus, as mulheres…
Tudo bem, tão respeitaveis quanto todas as outras mulheres de todos os outros países, mas a beleza, a cor de gengibre, o gingar, a música que saía de cada passo…
Realmente chegar a Angola abria horizontes com segredos e mistérios insondáveis.
Os guerreiros portugueses, aqueles que embarcavam de madrugada, em segredo, nos portos de Portugal, entoando músicas de Zeca Afonso entre dentes, melodias tão escondidas quanto as conversas dos capitães, mais tarde comparados com os oficiais de Dom Sebastião em Alcácer Quibir, dirigiam-se para a maior mistura de sensações, amores e temores que o mundo dessa década podia provocar.
Uns sabiam disso…
Certo, a guerra era um facto, tanto é que os portugueses a perderam…
Ninguém ganha guerras no país dos outros. Perguntem aos americanos e aos alemães…
Houve batalhas, sangue, mortos, mutilados e todas as coisas de todas as guerras…
Mas, não é sobre isso que vos quero falar. Não é porque essas histórias de portugueses a espetarem cabeças de guerrilheiros nos paus e angolanos a comerem criancinhas são simplesmente isso: Histórias. Histórias de guerra. Verdade ou mentira? Não sei. Espero que cada um de nós consiga encontrar a sua resposta, à sua medida.
Vamos falar de guerras boas, guerras mansas, guerras frias? Também acho que não seja necessário.
As guerras trazem sempre o mesmo resultado: - Destruição.
Países devastados, povos aniquilados, mentes lavadas e sonhos estraçalhados.
Houve algum momento na história do mundo em que não houvesse guerra? Um só segundo sem um acto de violência, sem uma vida ceifada impunemente, sem o choro abandonado de uma criança? –Não, não houve sequer um momento de serenidade total, porque o conflito faz parte da natureza do universo, seja a luz contra a escuridão, seja o frio contra o calor, seja o negro contra o branco, seja a guerra contra a paz. Nada existe sem o seu oposto.
Voltemos, então, ao tal assunto que há tanto tempo pretendo abordar.
Transporto-vos já para 1975, hemisfério sul, margem atlântica, Angola, Benguela, aí para Julho.
Como estariam as acácias rubras?
Reparem que, neste momento, eu já estava cá, no mundo dos vivos, sem ser surdo ou mudo . mas sinceramente não me lembro lá de grande coisa.
O problema geralmente é esse. Conseguir separar aquilo que nos lembramos realmente do que pensamos que nos lembramos.
As lembrancas podem manifestar-se dessa maneira. Às vezes foi só um sonho da primeira infância ou uma estória que alguém contou numa tarde mais impressionante do que o habitual. Guardamos essa memória e, anos mais tarde, pensamos que realmente aconteceu.
Passemos à estória propriamente dita:
Era uma vez uma familia que vivia em Benguela. O pai branco, nascido em Portugal, mas em Angola desde os seus tenros oito anos de idade. A mãe era mestiça, filha de branco louro de olhos azuis e de mãe mulata. Esta família pertencia à classe média-alta ou altamente média. O filho mais velho tinha14 anos. O filho mais novo acabara de completar 1 ano. Eram seis.
A situação era tensa. Os três partidos estavam na cidade: UNITA, MPLA e FNLA.
Todos eles eram movimentos armados.
O pai, que nada tinha de austéro, chefe da família que escolhi para representar as outras todas, havia decidido que ficariam todos em Angola, pois havia quem já tivesse enviado os filhos para Portugal, pelo sim, pelo não.
Apesar de todas as conversas que todos os fins de semana se desenrolavam na varanda da casa caracteristicamente tropical, a motivação de ficar era quase unânime.
Em Benguela era assim, como julgo que assim era no resto do país. Os amigos juntavam-se com as suas familias e falavam. Umas vezes à volta do rádio, outras à volta de uma guitarra alegre que puxava melodias mornas e poemas melancólicos. Nelson Ned, Lindomar Castilho e outros traziam a nostalgia necessária aos serões africanos.
-Dantes era melhor- dizia a mãe.
-Ora bolas-diziam outros- os turras hão-de de caír em si e parar com esses truques de não sei o quê de não sei qual independência. Mas será possível que nos venham incomodar a casa para carregarmos as armas deles, os feridos deles, os mortos deles? Essa guerra é deles. Dos turras e dos portugueses.
E era mesmo.
-O Marcelo há-de fazer alguma.
Não sei se me lembro, mas penso que me lembro que nada do que se dissesse era efectivamente conclusivo.
Realmente os partidos armados estavam nas cidades, haviam desmandos e algumas estórias furibundas de massacres e horrores. Creio que a maior parte destas estórias devem ter sido verdade nessa altura, pois os personagens jamais apareceram e, por uma ou outra vez, alguns anos mais tarde, falei com pessoas que perderam irmãos, pai e mãe, empregados ancestrais, casas, carros e orgulhos numa só noite.
Lembro-me de pensar, anos depois, onde estariam sepultadas essas pessoas. Na beira de uma estrada qualquer, numa salina, num areal, sem rituais fúnebres, sem despedidas, sem motivo algum. Mas sempre acreditei, com todas as forças do meu corpo que essas vidas levaram muitas lágrimas, tantas que foram rios, rios que transbordaram e se fizeram oceano.
Desse oceano falaremos mais tarde.
De manhã espalhava-se a notícia e quem conta um conto aumenta um ponto, neste caso, aumenta um ou mais mortos, uma ou mais chamas, muitas ou muitas mais humilhações. Que era só com os brancos… não é verdade. Que era só com o simpatizante deste ou aquele partido… Nem tanto. O mal era geral e já l´qa estava. Faltava vê-lo.
Quando o fenómeno é grande demais a dificuldade de enxergá-lo aumenta. Vejamos. Quanto mais perto de um quadro pomos os olhos, mais dificuldade temos em ver a sua amplitude, o seu jogo de cores, as nuances do artista.
Ora cá está. Estava mesmo junto a retina a eminência da revolução, do caos, de se perder tudo. Anos e anos de esforço, estradas desbravadas pelas próprias mãos, paisagens jamais vistas descobertas por aventuras juvenis, pedras semi-preciosas a embelezarem os cabelos que são as ruas das cidades, frutas jamais provadas, séculos de verdade ou mentira falados em português.
Um segundo bastou.
Uma gota.
A gota para a esta familia passou-se numa manhã tão ingénua quanto todas as manhãs de todos os despertares de todos os dias.
-Filho, anda cá!- gritava a mãe para o seu filho mais velho, sem saber que gritava para o despontar de um percurso novo, de uma vida completamente diferente daquela que sonhou - Ó, Margarida, onde esta o menino? Vai chama-lo já, que estou para aqui aos gritos que pareço uma maluca! Filho, anda ca!
O irmão mais velho apareceu francamente menos entusiasmado do que sugeriam os gritos da mãe.
-Mãe?
-Filho, estou a tanto tempo a chamar-te. Vai comprar manteiga ali a esquina. Mas, vais rapido que o pai disse para vocês não sairem, mas como é já aqui… Olha, leva a bicicleta que vais mais rápido.
A face rapaz transfigurou-se. Depois de três dias sem sair de casa por causa de uma paranóia dos mais velhos que os turras faziam e aconteciam…-É para já, minha mãe! - Tudo bem estudado ainda dava para ir visitar o primo, a alguns quarteirões. -Vamos nessa!
Tudo foi muito rápido.
O miúdo saiu.
Passou pela tal esquina e viu a alguns metros dele a loja do Senhor Zé Gato, o das carambolas. Comecou a pedalar lentamente, olhando para todos os lados para ver se algo acontecia, como diziam os mais velhos. Com sorte, em vez de ver um turra podia até ver três. De facto era uma aventura de realce. não conhecia ninguém que o tivesse feito. Pelo menos lá da escola…
Porém, o que aconteceu foi diferente de tudo o que ele pensou. A aventura era outra e já não era ele que a comandava.
No momento em que já se encontrava quase na entrada da loja, no fim dessa mesma rua, viu um homem armado de metralhadora e uma fita vermelha na cabeca: Um cubano.
O disparo fez desaparecer toda a gente dessa e de outras ruas. Silêncio. O zumbido depois da detonação.
O tiro atingiu a abencoada bicicleta. No quadro. Com o impacto o rapaz foi projectado, mas não para tao longe que o impedisse de correr, meter o que restava da bicicleta as costas e desalvorar a mais estupenda corrida de toda a sua vida.
Nem um beliscao.
Um cubano. Que raio estava la o cubano a fazer?
-Ele ha coisas!
Penso que tera sido um dos primeiros cubanos a pisar solo angolano, desculpem, nessa altura ainda era solo portugues.
Mas, inexoravelmente a gota havia sido derramada.
O meu pai ao ter conhecimento do episodio, simplesmente disse:-A mim não matam filho nenhum! Querida, vamos para Portugal.
Nos dias a seguir foi uma cornocopia de afazeres. –Como e que vamos para Portugal?
-O pai, o que e Portugal?
-Pai, e verdade que Portugal tem neve? Posso brincar na neve quando chegarmos?
-Pai, possso levar os meus brinquedos? não vou sem a minha bicicleta.
-Pai…
-Amor, os miudos estao a estudar… E depois como vai ser?
-Amor, tens a certeza de que…
A noite, debaixo de um calor confortavel, ouviamos bem perto os morteiros, bombas, tiros…
Ai comecamos a saber dizer palavras estrangeiras que queriam dizer guerra e medo.
Como e que se mete uma vida numa mala?
Como e que se sai fugido da melhor maneira?
-Amor, tens a certeza de que… Se calhar e melhor pensarmos outra vez.
O meu pai não tinha a certeza de nada. Isso eu sei porque sou carne daquela carne. Sinto isso com todas as forcas do meu corpo. Sei outra coisa:- A ele ninguem matava filho nenhum!
Muitas vezes penso na magnitude de uma decisao tao seria quanto esta que vos conto.
Penso que eu teria dificuldade em faze-lo pela dimensao.
Seis miudos, a mulher habituada a tudo de bom, empregadas, lavadeira, a casa paga a so seis meses, os amigos, os carros…
Portugal não estaria tao distante do meu pai quanto de nos? Talvez mais. Francamente mais.
Mesmo assim ele havia decidido e seguiu com a decisao.
A ele não mataram filho nenhum.
Sabia que não tinha dinheiro em Portugal, não tinha emprego, não tinha casa, não tinha amigos. Isto era o que ele sabia que não tinha.
Agora sei que ele tambem sabia outras coisas que tinha: Seis filhos, uma mulher que amava profunda e sinceramente, e energia suficiente para comecar de novo.
Nao tinha mais nada.
A seguir fomos para Luanda.
Penso que toda a gente tem momentos que não esta em si, que se encontra a uma distancia consideravel da realidade, sem poder fazer nada para alterar o ritmo dos acontecimentos.
Essa era a nossa altura.
Tudo o que pensamos ser possivel levar para Luanda acabou por ficar em casa deste ou daquele. Isto e, tudo perdido.
Luanda era a capital das luzes para quem vivia em Angola.
Quando desembarcamos Luanda ja não era assim.
Nao tinhamos sitio para ficar. Eramos muitos. Oito.
Percebem com facilidade que não ha amizade que resista a oito pessoas caidas de para-quedas.
Mas, como em todas as historias que merecem ser contadas, existem anjos. Sim, anjos. Daqueles que realmente existem e mudam a vida das pessoas. Aqueles do tipo que, sem ninguem saber porque, param a altas horas da noite numa estrada deserta e dao boleia livre e desinteressadamente. Leva-nos para um sitio seco e confortavel e sem quase nos apercebermos simplesmente desapareceram.
-Obrigado. Qual e o seu nome?- a resposta quase não se percebe. Nem e para perceber.
Sao assim os anjos.
Penso que todos nos, em alguma situacao da vida, fomos anjos. Ajudamos, as vezes sem saber porque, fazemos isto ou aquilo levados por uma forca que minutos antes não estava ali, no nosso peito.
Ser anjo deve ser isso.
Nao acreditam?
Passo a contar.
A situacao estava criada, ali mesmo, a saida do aeroporto.
O meu pai estava na bicha interminavel para os balcoes que davam acesso a ponte aerea para Lisboa que havia sido criada para os portugueses e os seus descendentes fugirem.
Alguem chegou a dizer que era para abandonarem, mas esse não esteve naquela bicha. A palavra certa e, realmente, fugirem!
A ideia do meu pai era não ficar em Luanda nem um dia.
Pronto, se necessario, ficariamos em Luanda um ou dois dias. não mais.
Porem, no aeroporto, o caos estava montado.
Todo o pais queria sair ao mesmo tempo pela mesma porta.
“O ultimo a sair que apague as luzes e feche a porta”.
Pois.
Nos estavamos nessa bicha.
As horas foram passando e, como todas as criancas fazem, pouco tempo depois o choro preenchia todo o espaco que as gargantas podiam preencher.
Faltava comida, agua, paciencia, higiene pessoal, etc.
Finalmente podiamos dizer a viva voz que eramos refugiados. Estavamos, por fim, incluidos nesse numero extraordiario dos refugiados, dos desamparados.
Podera haver alguma coisa mais romantica que uma familia de refugiados? Perguntem aos curdos.
Ser refugiado tem qualquer coisa de poetico. No inicio, ninguem quer assumir. Os outros sao refugiados, nos não, amanha vao ver… Os outros e que sao, nos… Vao ver…
Naquele desespero obvio, o meu pai acabou por estar as voltas, a falar com este e aquele, a perguntar: - Os avioes?…e preciso fazer o que? Eu não sabia… Como e que eu consigo…? …Sim, senhor, oito, os miudos sao seis…
O entardecer estava quase no fim e a noite adivinhavasse a qualquer momento.
Alguem chegou ao pe do meu pai e disse: -Olhe, senhor. Reparei que ja esta a tentar arranjar algum sitio para si e para a sua familia passarem a noite, não e verdade?
-Sim. Mas…
-A unica coisa que posso fazer e levar-vos para passarem a noite a uma casa que eu tenho ali na Maianga. Mas não tem camas.
-Tudo bem. Eu so quero que os miudos…
-Eu sei. Venha comigo.
-Nao tenho carro, sabe que…
-Eu sei. Venham todos no meu carro. E grande.
Nos fomos.
Sempre admirei a capacidade do meu pai para arranjar solucoes.
Nao havia colchoes na tal casa. Ele arranjou uns colchoes da tropa.
Nao tinhamos comida. Ele arranjou unss tubos de leite condensado que nos valeu durante a semana que passamos em Luanda.
Ainda hoje, quando penso nesses tubos de leite condensado, salivo.
Porque? Porque foi o meu pai que mos deu. Ponto final.
Quem era aquele homem?
Porque que ele fez aquilo? Oito pessoas numa casa, sem pagarem, sem perguntas, sem despedidas…
Eu avisei que os anjos andam por ai.
Agora acreditam?
No fim dessa semana, que eu não sei quando comecou e acabou, o meu pai conseguiu os nossos lugares na ponte aerea.
Agora seriamos refugiados de papel passado.
Aqui comecou a nova vida que a minha mae, sem saber, havia gritado algum tempo antes.
Aqui acaba o que eu não me lembro bem.
Nao me lembro de ter sentido frio antes de Portugal.