Meu reino por um pedaço de mim. (Maria Mal-Amada)

Crônica extraída do livro Maria Mal-Amada

de Lorena de Macedo

Estou perdendo pedaços. Como pastilhas coloridas de um mosaico já desenhado, meus pedaços estão por aí. Por aqui acho vestígios do possível paradeiro de cada um dos fujões.

Ontem mesmo fui em busca de um pedaço ingrato que há muito tempo se desgarrou do bando. Na prateleira de uma estante horrorosa, meu pedaço era exibido em um porta-retrato. A dona da foto ensaiou um chilique, dizendo não ser obrigada a me entregar um pedaço tão bonito. Ela não tinha o negativo. Em uma época de filmes fotográficos de 12, 24, 36 e 48 poses, não havia reproduções do meu pedaço em lugar algum.

Vou usar de uns truques modernos para salvar meu pedaço e prometo que te dou uma cópia. Uma pena ela me conhecer o suficiente para saber que jamais veria meu pedaço novamente, a menos que lutasse por ele. O pedaço é meu! Ficou sem a foto. Resgatei meu pedaço de anos atrás. Pedaço gostoso de mais. Lembrança de uma época em que valia a pena doar pedaços sem nenhuma preocupação.

Perco pedaços por onde passo porque sou mole demais. Essa frase tem autoria e nenhum propósito. Pertence à minha mãe, a maior usurpadora de pedaços da região Maria. Esperta como uma coruja velha, coleciona meus pedaços para barganhá-los comigo quando tento me rebelar. São moedas de troca. A usurpadora de pedaços alheios, coruja de gigantes olhos sabe negociar.

Cada um dos idiotas inscritos na lista dos navios que afundaram tem pedaços, ainda que pequenos. Você tem mais de um... Fui deixando pedacinhos no meio do seu caminho na esperança de que você fosse guardá-los. Ainda bem que guardou. Guardou e não afundou. Fica boiando em volta da minha ilha não tão paradisíaca como eu gostaria.

Mas só para você saber que é preciso se lembrar do lugar onde foram guardados. Talvez eu os queira de volta algum dia. Pode ser que eu bata na sua porta às duas da manhã procurando por algum pedaço mais urgente. Faço coisas como essa em madrugadas desafiadoras.

Mole demais. No bolso de uma calça jeans que me deprime bastante, encontrei um pedaço pequeno. Amassado e sem muita relevância prática, esse pedaço só serviu para me mostrar a burrice do mundo. Burrice de quem não sabe sentir nada sem racionalizar cada gotinha de sentimento puro. Palavras burras escritas num pedaço de papel amassado com toda a força do meu ser. A calça vai ser doada para alguém com 5 quilos a menos do que eu.

Não posso resgatar todos eles. Não posso sair por aí como uma desvairada procurando pedaços de mim mesma. Assobiar e ser bombardeada por pedaços se ajeitando em lugares que já se acostumaram com o vazio.

Irresponsável por deixar pedaços por onde passo? Há quem diga que a irresponsabilidade está em não ser despedaçada. Sei apenas que estou perdendo pedaços a minha vida inteira. Inteira e pelas metades.

Clareiras gigantes em pontos estratégicos me fazem sentir saudade de tanta coisa! Faltam pedaços de mim porque me doei em algum momento. Admito que não fui muito esperta na maioria deles, mas também roubei pedaços de outro alguém. Pedaços de tamanhos diferentes dos buracos que tenho. Mas ainda sim, pedaços de alguém.

Despedaçada. Muito mole e descuidada. Meus pedaços fizeram à diferença, mas não quero todos de volta. Quero apenas o estritamente necessário para me sentir menos vazia e mais disponível para novas e inéditas doações.

Não conte tanta vantagem. Meus pedaços não são seus. Apenas foram emprestados por um período de tempo indeterminado. Espere até as duas da manhã de uma madrugada qualquer...

Pode esperar.

Maria

Lorena de Macedo
Enviado por Lorena de Macedo em 24/10/2008
Reeditado em 25/10/2008
Código do texto: T1245593
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.