Cuidado, mãe!
"...estou cada vez mais convicto de que o tempo é um dos grandes patrimônios de quem envelhece. Se bem utilizado, torna-se uma importante ferramenta de inserção social. Se tornado inútil, é um dos piores castigos para quem ainda se sente em condições de ocupá-lo."
Wilson Jacob Filho, na Folha de São Paulo, de 16/03/2006
Minha mãe tem 80 anos. Vivo com ela.
Apesar da idade um pouco avançada e de alguns pequenos problemas clínicos inerentes a essa idade, de forma geral apresenta boa saúde física. Participa de atividades no templo budista que frequenta, vai semanalmente treinar canto com sua turma da terceira idade em um clube. Eventualmente viaja com sua turma para excursões de lazer.
Ela prepara nossa comida (minha e dela), lava os pratos. Vai ao clube ou ao templo de ônibus, sozinha.
De vez em quando encomendo algum prato para nós em um desses restaurantes "delivery", mas sinto um certo desconforto de sua parte quando isso acontece. Às vezes reclama do prato. Creio que isso se deve, na verdade, à ameaça que o fato traz à sua necessidade de ser útil. Houve uma época em que me meti a lavar os pratos, mas eu senti que isso parecia lhe deixar um pouco ressentida, como se eu estivesse lhe tirando alguma coisa. Eu poderia levá-la ao clube ou ao templo de carro, mas ela tem condições físicas de tomar o ônibus e eu não insisto, porque não quero tirar-lhe sua independência.
Ensinei-lhe a usar seu cartão de débito e outro dia, ao pagar uma despesa dessa forma, causou admiração em seu farmacêutico, que lhe perguntou a idade. Imagino que sua auto-estima deve ter-se elevado um pouco nesse dia.
Alguns incidentes ocorridos com ela enquanto estava sozinha poderiam tirar-me essa ideia de que os idosos devem ser independentes enquanto puderem. Há alguns anos atrás, em uma excursão, ela sofreu uma pequena fratura em uma das vértebras devido a um solavanco que o ônibus teve ao passar por um buraco, o que lhe causou dores e perda de um tempo para tratamento e recuperação. Um dia foi atropelada por uma bicicleta enquanto atravessava a rua. Outro dia caiu ao tropeçar na calçada e teve que ser auxiliada para erguer-se. Uma vez, enquanto estava no templo com o monge e a esposa deste, foi assaltada por um ladrão, em pleno dia, embora com pouco prejuízo financeiro.
Por causa desses incidentes, uma das minhas irmãs, que mora na mesma cidade, compreensivelmente preocupada, opina que minha mãe não deveria mais participar de excursões, que não deveria mais tomar ônibus sozinha. Que não deveria usar cartão de débito, pois corre o risco de atrair a atenção de ladrões que estão de olho nos velhinhos indefesos.
Entendo sua legítima preocupação, mas discordo dessa postura protetora. Todos nós estamos sujeitos aos riscos de um solavanco de ônibus, de tropeçar na calçada, de sermos assaltados, embora eles sejam um pouco maiores com os idosos, reconheço. Mas será que vale a pena procurarmos eliminar todos os riscos a que pode estar sujeito um idoso, pelo preço de tirarmos a sua dignidade deixando-o, no limite, enclausurado dentro de uma casa assistindo televisão, correndo o risco, esse sim palpável, de sofrer um lento embotamento psíquico que afete sua saúde mental ?
Quando minha mãe sobe num ônibus, ela está exercitando seus músculos. Quando digita sua senha na máquina de cartões, ela está exercitando sua memória. Quando canta, ela está exercitando sua veia artística. Quando participa de excursões, ela está se integrando socialmente, enquanto conversa com suas amigas, e está se sentindo bem ao ver novas paisagens. Talvez, nesse último caso, ela esteja vivendo seus últimos momentos de alegria, que devem ser vividos com toda a intensidade.
Por isso, apoio todas as suas iniciativas que a façam viver. É natural que queiramos proteger nossos pais de todos os percalços, que lhes desejemos todo o bem-estar físico possível no final de suas vidas. Mas será que não estaremos sendo egoístas quando, em nome desse desejo, lhes tiramos toda a liberdade e a auto-estima que ainda possuem apenas porque queremos mantê-los em vida conosco o maior tempo possível ?
Mas eu, embora com essas ideias, passei a me preocupar também com minha mãe depois daqueles incidentes. Não é sem apreensão que a vejo partir sozinha para suas atividades. Por isso, sem perceber, tornou-se um hábito para mim, todas as vezes em que ela me avisa que está saindo, adverti-la : "Cuidado, mãe!". E quando ela responde com um lacônico "Tá!", sinto-me reconfortado porque sei que ela percebeu minha preocupação e irá realmente tomar cuidado consigo mesma.
Pelo andar da carruagem, parece que todas as nossas crenças religiosas, cedo ou tarde, estarão ruindo sob o peso dos argumentos sensatos e consistentes dos grandes livres-pensadores, como Gustave Le Bon, Carl Sagan, Bertrand Russel, Henry L. Mencken e outros de mesmo quilate, que nos mostram que nossas crenças nada mais são do que ilusões que nossa fértil imaginação produz, numa tentativa desesperada de achar um sentido para essas nossas vidas tão frágeis. Parece que o que somos é somente o que pensamos que realmente somos : um pouco de matéria viva replicante que vem ao mundo apenas para propagar seus genes e vai embora para o nada de onde veio. Não teremos uma segunda chance, não reveremos espíritos de entes queridos, não existe céu e inferno. Vive-se uma única vez e tudo acaba.
Tenho sorte de ainda ter minha mãe viva comigo, mas sei que o tempo está se esgotando e que o destino implacável reserva-nos um momento doloroso de separação, a partir do qual minha vida terá que seguir adiante sem mais sua companhia.
Nesse momento, na sua última partida, quero ter forças para dirigir-lhe um último "Cuidado, mãe!", e quero ter certeza de que ela estará lúcida o suficiente para responder-me com um último "Tá!", querendo assim expressar que entendeu meu apelo, para que eu possa sentir-me imensamente reconfortado por isso.