Velório de rico e de pobre
Tenho uma velha amiga em Montes Claros, desde quando eu fazia Tiro de Guerra e morava na casa da minha avó Laura, naquele chalezinho que resiste de pé, até hoje, ali na Praça Cel. Ribeiro.
Fátima Bento é o nome dela. E eu a admiro pela sua irreverência, verve, alegria contagiante e garra de mulher de fibra. Ela trabalhava, então, numa loja que vendia gás, na casa de Nelson Alkimim, vizinha à da minha avó. Ali, a caminho da Delegacia de Polícia – pois era repórter policial, naquela época – eu sempre parava para um dedo de prosa com ela.
Observadora arguta das acontecências deste Sertão, ela é um repositório de histórias, costumes e vivências da nossa gente.
Por esses dias, revelou-me suas hilárias observações sobre velórios de rico e de pobre. Veja que primor de narrativa, em suas próprias palavras, sem qualquer autocensura: “Tudo aconteceu quando o meu querido amigo Afonso Henriques morreu. Fui ao velório lá na Igrejinha do Rosário. Fiquei sentadinha num banco observando o pessoal que chegava e dava os pêsames para os parentes. Não se ouvia nenhum ruído, nenhum mosquito voando. Eu achava aquilo muito engraçado e chique. O pessoal chegava, cumprimentava os familiares, falava bem pertinho do ouvido alguma coisa que eu nem sei o que era, e a pessoa ligada ao defunto só balançava a cabeça, naquela de aceitação, e limpava o canto dos olhos como se estivesse chorando, com um lencinho branco. Todos muito bem vestidos, de preto, é claro, e eu lá, coitadinha, lembrando dos meus entes queridos que já tinham partido, fora os escândalos que nós, da família, dávamos quando sabíamos da morte. Tinha ainda os chororôs do velório, e olhe que eram choros altos, com soluços e cabelos desgrenhados. No final, era tudo muito sofrido”.
E continua Fátima: “Lembro-me, muito bem, quando um parente muito chegado faleceu, ou melhor morreu, pois quem falece é rico. Tratei de fazer igual ao velório de Afonso Henriques. Comprei óculos escuros pra toda a galera lá de casa, fiz uma reunião com todos e disse: pois é, pessoal, é chegada a hora, nada de choro, todos de óculos e nada também de desmaios. O povo sempre desmaiava nos velórios. E eu também. E assim foi. Todos nós na beira do caixão, lá na Igrejinha do Rosário, também, que eu achava super bacana fazer lá. Quando minha mãe pensava em suspirar alto, coitada, eu a cutucava e lhe dizia: “Olha o touchê, seja bacana e chique, faça sempre como eu, não pegue mal, pelo amor de Deus. A nata de Montes Claros tá toda aí.”
Um dia, estando em um grande grupo de amigos, no Restaurante Aroeiras, resolvemos fazer algo diferente. Certamente movidos por algumas garrafas de vinho tinto, decidimos encenar, ali mesmo, ao vivo e em cores, a história dos velórios, contada pela Fátima Bento. A idéia espraiou-se rapidamente por mesas vizinhas e foi fácil conseguir o apoio de alguns atores coadjuvantes.
Duas mesas foram arrumadas e, sobre elas, colocaram um grande “defunto”: o Giu Martins, com chumaços de guardanapos de papel nas narinas, simulando algodão. Em torno do féretro, Felicidade Tupinambá, Maria Ângela Braga, Viviane Marques e as irmãs Marta e Angelina Antunes atuaram como parentes ricas do “de cujus”, com choros contidos.
Mas o ponto alto da encenação ocorreu com a entrada da Fátima, no maior escarcéu. E ela mesma conta: “como não poderia deixar de ser já cheguei gritando, não aceitando a morte daquela pessoa maravilhosa, dizendo que Jesus não poderia deixá-lo ir, era uma pessoa de grande valor social. Enfim, eu não poderia aceitar de jeito nenhum aquela tragédia. Vieram ao meu socorro alguns ‘pobres’, como : Danilo Terence, Ascânio Macedo, e outros mais que não me lembro no momento, pra me consolar, abanando-me com tampa de caixa de sapato e me dando álcool para eu cheirar, até voltar do desmaio. Até hoje, essa história perpetua, sempre que alguém chegado falece, a galera fica de olho em mim prá ver a minha reação.”
Essa Fátima – um grande talento para o teatro – tem muitas histórias pra contar...