Coisas incompreensíveis
Algumas coisas são incompreensíveis. É o caso de rasgar dinheiro. O ditado popular ressoa a máxima de que se quiser testar a loucura de alguém, jogue-lhe dinheiro na mão para ver se o rasga.
Uma situação como essa aconteceu meses atrás na casa de uma família composta por uma avó, uma mãe e dois netos. Vasculhando a estante de livros e de discos velhos, tirando a poeira e retirando alguns papéis, a avó encontrou, escondidas num envelope amarelado de tempo, três notas de vinte reais.
A cor amarela brilhante, as notas estalando de novas e o insólito de estarem guardadas num envelope velho no meio de discos e livros aos quais ninguém mais recorria germinaram uma porção de precauções na velha que, sem pensar duas vezes, rasgou as notas em partes iguais, três vezes seguidas.
Feliz pela iniciativa, terminou de limpar a estante, escolheu alguns livros para doação, separou discos para venda em algum sebo, meteu-se na cozinha para preparar o almoço. O peixe comprado na tarde anterior dava um trabalho danado. Gostava de comer, porém preferia não prepará-lo pelas delicadezas que o procedimento culinário exigia.
Antes que a filha e os netos chegassem – ainda faltavam quase duas horas – decidiu pagar as contas de água, energia elétrica, telefone, internet, assinatura da revista, do Jornal de Assis e a mensalidade da natação. Duas vezes por semana, antes das sete horas, ela e um grupo de amigas entravam na piscina daquela academia perto da Barbelita.
A caminho da lotérica, cumprimentou alguns transeuntes, o vigilante do supermercado, que conhecia de vista, uma criança que brincava com a bola e tentava esconder a boneca da irmã atrás de uma árvore esquecida.
- Ainda bem que fiz aquilo, pensava em voz alta, lembrando da liquidação do dinheiro. Aquelas notas pareciam de verdade. Já imaginou se aqueles danados encontram o dinheiro? Se dona Berenice sabia de uma coisa, essa coisa era a danação dos netos. Certamente se tivessem achado aquele dinheiro, tão bonitinho, tão perfeitinho que parece de verdade, eles iam gastar comprando essas coisas de computador ou coisa parecida e lá ia eu parar na delegacia por distribuição de dinheiro falso. Onde já se viu? Cédula de dois reais eu já vi. Todo mundo vê. Agora, cédula de vinte reais? Isso não existe.
Uma moça de franja, óculos escuros discretos e sandálias excepcionalmente fetichistas, escutava o discurso da avó.
- Olha! Que sorte. Trezentos e sessenta reais redondos, falou a atendente. Dinheiro ou cartão?
- Vou pagar em dinheiro, respondeu dona Berenice, entregando oito notas de cinqüenta reais e recebendo duas notas de vinte reais de troco.
Pegou o dinheiro, olhou para as notas e para a atendente, ensaiou uma pergunta, sentiu um leve desconforto:
- Ai, meu Deus!
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 23 de outubro de 2008.