A Forma de Giovanna

Certo dia, pensava Juca com seus botões, de que a sua vida beirava ao desleixo, vivia de forma insossa, mas não havia em seu interior uma carência total de valores ao que fosse realmente verdadeiro. A pura verdade é que bem no seu íntimo, ele sabia que cerrava os olhos da alma ao que fosse realmente necessário para ser feito na condução de sua jornada.

Chegava a definir-se como um misto de quadrúpede pensante e bicho indomável, sentia que era largado, admirador apenas daquilo que se queria tocar, ver e ouvir. Dia após outro e as suas perspectivas se apresentavam sombrias, sem anseios de conquistas.

Ora, como pode ser isso se fora educado na boa fé e nos costumeiros princípios do amor e da fraternidade? Ele perdera, com certeza, a garra para lutar pelo que há de melhor para a sua vida. Revoltava-se consigo mesmo pelas coisas tolas que fazia e pela selvageria de muitas de suas atitudes, suplantava todos os desejos de bondade da alma e do coração.

Mas, a partir daquele dia, sua vida se transformou como num passe de mágica. Foi um milagre, algo delicadamente forte e intenso. Uma brisa suave, repentina que acariciou as camadas mais profundas do seu coração, como se fosse um toque do dedo do Divino, e ele, na sua pequenez, pode vislumbrar aquele sorriso cativante da vida, que o convidava a sentar-se numa mesa linda e bem postada de plenitudes mil.

A monotonia das coisas e dos seres foram deixadas para trás e tudo se tornou mais agradável, foi como se ele estivesse vagando numa floresta cerrada, totalmente às cegas, e de repente os seus olhos introvertidos se enchessem de um brilho cristalino e no abrir e fechar das pálpebras, começasse a sentir uma profunda paz.

Era o ano da posse do primeiro presidente do Brasil, eleito de forma direta, quando João Carlos e Julieta juntaram seus trapos. Uniram-se apenas perante a lei dos homens. Tudo às escondidas. Ele tinha a impressão de que o pai dela o detestava. Nunca entendeu bem porquê pensava assim. Eles não eram totalmente pobres, apenas existia para eles uma escassez de riquezas materiais e financeiras. À duras penas, uma pequena casa em alvenaria foi construída num terreno cedido pelo pai dele. Apesar de todo esforço e sacrifício, continuamente vêm lutando para que a construção chegue a um termo maior.

Iguais nos sonhos de prosperidade, mas diferentes em formas e tamanhos externos e internos. Polaca, apelido de infância, era do signo de Aquário de pouca estatura, meio loira, meio mestiça, todos pensavam que ela fosse uma nissei devido aos seus olhinhos puxados da cor do mel, mas era na verdade bem brasileira, trabalhadora, esforçada, valorizava por demais suas coisinhas, seus cacarecos. É bem verdade, eles brigavam, se desentendiam com freqüência, já que ela era meio mandona e autoritária, comum das mulheres possessivas. Porém, existia entre eles um respeito, coisas do amor.

O Juca, como todos o chamavam, um leonino alto, já teve cabelos negros lisos na juventude, mas que já se apresentava com uma calvície de respeito. Um ser humano de grande coração, embora pensasse ao contrário. Adorava ladear-se de amigos sinceros. Os óculos eram parte de sua vida desde os treze anos, camuflavam a doçura de seus olhinhos, mas imprimiam-lhe um ar de seriedade e de respeito. Estudou num seminário por anos, mas desistiu de concorrer à carreira eclesiástica, por convicções pessoais. Porém, mesmo que tentasse esconder, ainda tinha os seus pequenos olhos brilhantes voltados à uma fé enraizada no bom Deus e às mãos sempre postadas de fervor e de pedidos à Mãezinha do Céu, valores primeiros que a sua saudosa mãe, Odaléa, soube lhe ensinar.

Noutro dia, Polaca estava buchuda, grávida. Sonho de ambos que se realizava. Foi uma grata alegria, uma felicidade larga. Era o primeiro rebento chegando. Uma menina! confirmaram os exames. O sorriso inundava aqueles rostos joviais.

Todos os meses ela fazia o pré-natal. O bebê se desenvolvia bem e satisfatoriamente aquela barrigona era cercada de cuidados e de carinhos. Juca radiava alegria pura pelos seus olhos serenos. Suas mãos espalmadas deslizavam delicadamente sobre aquela enorme bola e que instantaneamente se revolvia como num fluxo e refluxo de maré.

Eram agitos e pequenos chutes, como se o bebê já quisesse sair para brincar. A cada palavra sussurrada pelo casal era respondida com profunda euforia silenciosa. Nas músicas que ele cantarolava, podia sentir o roçar dos pesinhos do frágil ser escondido, como se estivesse a pedalar pela barriga da mãe.

O rádio era a diversão predileta do casal. A estação preferida era a Difusora de Paranaguá, principalmente no horário das cinco horas da manhã, quando era tocada a música do Carequinha, o velho saudoso palhaço que cantava: “Chegou a hora de apagar a velinha, vamos cantar aquela musiquinha, parabéns (poom, poom), parabéns (poom, poom)... pelo seu aniversário”. Lá estava Juca todo corujão com os ouvidos e as mãos plantadas a sentir aquele ser contagiante. Que energia angelical aquele ser transmitia.

Estavam ansiosos pela hora de ver e tocar aquela menininha. Logo, Juca determinou que o nome dela seria Giovanna, Joana em italiano, o que combinaria com seu primeiro nome, João, uma vez que havia um trato entre a esposa e ele, de que se fosse menina, o pai escolheria o nome da criança. Ele gostava da sonoridade daquele nome.

Nasceu numa noite de março, a bela Giovanna. Admirou embasbacado o pequeno ser, que tinha os olhos envoltos numa teia de aranha. Nariz e bochechas vermelhas, braços e pernas agitadas, chorava forte como todo recém-nascido, e fitando-a por inteiro, agradeceu a Deus, pela linda, desprotegida e frágil criatura.

Um quê de felicidade invadiu-lhe os braços e as pernas. Juca foi o primeiro a vê-la, depois das enfermeiras e da jovem mãe. Dias depois descobrira que a menina nascera nas mãos de parteira. O dito doutor só aparecera após o nascimento. Pena que não pôde acompanhar o parto, afinal de contas foi pelo SUS, na Santa Casa de Misericórdia. Chateava-se só em pensar que pagará cinqüenta pratas ao médico para que atendesse ao parto. Como muitos brasileiros sentiu-se uma vez mais enganado, mas importava que estava lá, no corredor, viu quando saiu da sala de parto a enfermeira carregando aquela bonequinha, enrolada num pano de hospital, toda suja, esquisita no seu entender. Nua.

A felicidade era trêmula, não sabia como agir, o que fazer, mas apesar do nervosismo estava leve como uma pluma. Realizado. Sem conseguir falar com a patroa, foi para casa. Bebeu com seu pai o xixi da criança.

Na manhã seguinte, estava cedo na maternidade. Encontrou a mulher aos prantos. Inconsolável. Um frio estarrecedor correu-lhe pela espinha. Temeu pelo pior.

Polaca contou-lhe, entre lágrimas e soluços, o que o pediatra lhe dissera de forma ríspida, na lata, de que o bebê tinha uma doença grave. Não seria normal, era portador de síndrome de down. Seu rosto franziu de raiva pela atitude tomada pelo pediatra, por não ter respeitado o estado emocional de uma mulher no pós-parto, que poderia trazer conseqüências sérias à sua saúde. Não poderia tê-lo esperado para conversar?

Os olhos de Juca ofuscaram-se atônitos. Sabia o que era aquilo. Como seminarista, já visitara crianças portadoras daquele tipo de anomalia. Também tivera um irmão assim, já falecido. Buscava algum sentido para o que estava ouvindo, uma inspiração, uma palavra. Ter estado poucos momentos, poucas horas com uma pessoa portadora daquela síndrome é uma coisa. Contudo, imaginava como seria ter um ser permanentemente aos seus cuidados. Pensava e o mundo fugia-lhe aos pés. Um frio cortante invadiu-lhe a nuca. Cerrou os olhos desesperados... Não! Uma luz Senhor... Fitou Polaca fundo nos olhos destroçados, segurava as lágrimas. Abraçaram-se demoradamente.

- Calma meu amor... Calma.

- Ela é nossa filha, continua ele.

- Deus nos deu. É uma dádiva. Como diziam meus velhos, presente não se rejeita. Enquanto nos esforçamos para ser lampejos da perfeição Dele, apontava Juca com o dedo para o céu, Ele Próprio nos concede o seu sorriso puro. Sim Polaca, nossa filha é mais perfeita que qualquer ser humano que se julgue tal. Portanto, vamos amá-la, criá-la e cercá-la de cuidados. É um anjo. Deus nos deu um anjo da guarda. Ele fala conosco.

A mulher ainda inconformada, assustada, chorava e suspirando retrucou:

- Mas o médico falou que não vai andar nem falar. Vai ser um vegetal. Cheio de problemas. Por que isso logo conosco?

Juca, com voz autoritária, sem vacilar diz para a mulher de olhos descrentes:

- Escuta... nunca te esqueças, Giovanna é mais que nossa filha! Ela veio para iluminar nossas vidas. Nossas luzes são opacas, nossas vidas sem sal, sem sentido. O brilho dela transcende nosso conhecimento, ela vem do Todo-Poderoso. Somos abençoados. Vamos educá-la com o melhor carinho e amor do mundo. O Pai sabe o que faz. Está nas mãos Dele.

Juca tem razão, amigos leitores, pois Deus não escreve por linhas tortuosas. Ele é a própria exatidão, a Perfeição Suprema. Nós somos apenas imagens Dele, por isso somente refletimos pequenas, quase ínfimas luzes de perfeição. Somos como vaga-lumes piscando nas noites, mas que sequer conseguem brilhar diante da imensidão do sol.

No palco da vida, Deus fez o ser humano à sua imagem e semelhança. Porém, são raras as vezes em que as pessoas se lembram de serem filhos do Criador, levando uma vida pacata, dispersa de atitudes saudáveis, talvez até abaixo do nível, daquele jeito comum, como deveriam viver os mortais humanos.

A vida tem formas, cores inesquecíveis, trejeitos por vezes espalhafatosos, tamanhos de qualquer gosto, maneiras mil de olhares esquisitos e mongóis, sorrisos de todos os tipos, mas como qualquer forma de vida, sempre se apresentam especiais.

Não há formas para um ser. Existem, sim, formas de amor, maneiras de acolher. Ser diferente, incapaz, não andar, não falar. O que é isso amigos? Como qualquer ente racional, aqui ou em Júpiter, não passaremos de meros egoístas, isso sim. Nós evitamos tudo o que nos embaraça. Não fujamos do comprometimento e atitudes para com os nossos pares.

Assim, alguém especial não é apenas diferente. Existem milhares de lares com pequenos sorrisos do Pai Celestial, como a graciosa Giovanna, gente diferenciada, puros olhares da Mongólia. O que nos torna diferentes deles? Pode ser tudo... pode não ser nada... mas com certeza é algo a que chamamos amor incondicional.

A vida torna-se diferente na forma como se escolhe trilhar a boa jornada. Juca e sua esposa são tão especiais e tão diferentes em formas quanto a bela Giovanna, o ser maravilhoso que geraram. O que torna a Giovanna diferente não é a beleza, tão pouco a inteligência ou qualquer outro atributo efêmero, mas a forma gritante de sua dependência e que torna os seus pais cativos e ávidos para o amor constante. Mesmo fragilizada humanamente, ela é o elo forte desta corrente que transformou o interior de Juca e Polaca.

Diferente, leitores, é aquele ser desprendido de futilidades e totalmente aberto às maneiras de amar e de se doar. O ser humano não é uma máquina que foi criada com defeitos de fabricação e deva ser destruída ou descartada, nefastamente excluída de nosso convívio, por não apresentar nossos indecentes atributos de perfeição terrenas. O nosso recall é definitivo, chama-se morte. Todo mundo têm um quê de especial. Toda vida é um fenômeno particular que merece ser tratada com requinte.

Giovanna, modificou as vidas de Juca e Polaca. É gostoso vê-los unidos. Os médicos erraram. A menina veio a falar e a andar. A forma de Deus está na simplicidade. A sua fórmula é amor incondicional.

Comentários

12/11/2008 13:50 - Marúcia Herculano

Um dia disse a um amigo querido que Deus manda seus anjos de aparência frágil para nos protegerem. Como cegos, por vezes, não percebemos que a aparente fragilidade é tão somente a forma de fazer despertar em nós virtudes, nobreza, fortaleza. Julgamos cuidadores, quando na verdade somos cuidados! Juca e Julieta receberam tal presente, ao conceberem Giovanna e felizmente, possuiam discernimento e sobretudo, fé na bondade e sabedoria do Criador para compreenderem o que a vida lhes reservava! "Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus."... São esses personagens portadores das Bem Aventuranças reveladas pelo Cristo Jesus! lindo, Geraldo, Obrigada!

Geraldo Mattozo
Enviado por Geraldo Mattozo em 21/10/2008
Reeditado em 03/09/2018
Código do texto: T1239930
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