PARTIDA VIRTUAL
"Monolítica", disse certa vez um outro. "Uma mulher de tragédia grega na velhice" - assim selou ele a minha fotografia do futuro. Melodramática, retórica, rio falante a inundar todas as margens - "Você fala, fala, mas não faz nada", diz o papagaio de Queneau. Pobre papagaio, ele só aprendeu a fazer isso e digo a mim mesma que me vou com este excesso de bagagem, a contragosto, e alguma esperança de ainda conseguir pagar, nesta vida, pelo menos parte do amontoado de dívidas da família, financeiras, amorosas, metafísicas, metamórficas. As dívidas da lealdade. As dívidas da traição. As dívidas da piedade e da auto-piedade inúteis. A esperança, mínima, de ainda vir a ter algum saldo credor.
Partir. Deixar tudo e todos. Levar comigo, se possível, os meninos, de futuras e distantes salas de aula. Os meninos, ainda inocentes apesar de muitos de seus atos já de adultos prematuros e amargos. Permanecer com eles, onde quer que esteja, onde quer que procure, desesperadamente, manter a esperança viva.
Partir, não como teria partido há vinte antiqüíssimos anos, quando a alma, que se julgava tão vivida era, em verdade, ainda quase virgem; com a alma que carregava ainda a presunção de saber, de verdade, alguma coisa. Partir, partir agora, vinte anos depois. Partir com este cansaço de tantos mundos perdidos nos países de fora e dentro, com este cansaço onde não cabe mais lágrima alguma nem ninguém, absolutamente Ninguém a quem culpar.