Bata a porta e vá...

Deixe estar, pode bater a porta e ir, vá de uma vez e não olhe para trás. Não, não olhe a cena que fica, o rosto deprimente que se instala, vá, vá de uma vez e não diga palavras que venha se arrepender depois. Nem seja piegas ao ponto de se despedir como se fosse uma obrigação, uma coação, um constrangimento, uma sujeição. A humilhação é uma mortificação, um rebaixamento, uma desonra, é uma das piores coisas para um ser humano, a humilhação, um aviltamento... E eu que não quero chorar, jamais, e eu, logo eu que detesto choro, abomino, lágrimas rolando dos olhos sem controle, odeio lamúria. O descontrole é um desgoverno de suas faculdades, a perca da razão, da lógica, do bom senso; a humilhação e esse momento deprimente, deplorável, lastimoso, febril, mísero de despedida... Sinal de fraqueza, de pusilanimidade. Se não me queres é porque não me merece. Não se sinta superior, aéreo, elevado, não se ache porque encontrou um novo amor, esses amores de orkut, de bate-papo, de olhos que se encontram enquanto passamos na rua, na praça de alimentação do shopping ou num desses carnavais fora de época onde ninguém é de ninguém, essas coisas efêmeras, provisórias, fugazes, passageiras. Amores de beira de estrada, de noitadas de motel barato em dia de promoção... Um corpo bonito, um beijo mais caloroso, entusiástico, uma novidade, uma nova posição, uma fantasia realizada. Faz fora de casa o que nunca teve coragem de fazer dentro e já se acha amando. Amor, amor, um novo amor assim, nascido do nada, do nada. Fácil, não, muito fácil, tudo muito fácil. Odeio alocução. Sermão. Falação. Odeio e disse a mim mesmo que nada diria. Nada pronunciaria. O silêncio seria a minha arma de arquivamento, iria me conservar, controlar, sabe, não metralhar esse momento patético, enternecedor com choramingalhas, mas nunca é ou nunca pode ser como pensamos porque pensamos tanto, não foi, pensamos tanto para nós dois e veja a que ponto chegamos. Um novo amor, assim, como é assim o dia que nasce após o outro findado, a lua depois do pôr-do-sol... Se quer ir mesmo, vá, pode ir de uma vez. Vá, vá acolher-se nos braços de quem te merece ou na coisa melhor que te cabe, que te compete, vá. Não, não pense que não fui eu quem não te mereci, foi você quem não sou cativar meu coração de forma a sentir-se seguro, confortável ao meu lado. As incertezas, as indelicadezas, essa estranha forma de dizer que ama, de dizer, simplesmente dizer, esquecendo-se que existem outras linguagens, outros gestos que até nos diz que o que foi dito pode não ser a verdade que se deseja. Uma questão de ego e neste momento a inteligência pede passagem para o lugar do esquecimento. Esquecemos a etiqueta, as normas, as formalidades e o desejo da agressão bate a porta da falta de senso e se eu pudesse, agora, te alcançar com este objeto que em minhas mãos vibra, te partiria o corpo em partes dízimas, medíocre ser, pequeno ser, causa de meus desafetos... Espere, escute, vire e encare meus olhos como nunca teve coragem de realmente olhá-los. Perceba na profundidade do mel o que está em mim, o que sai de mim, o que resta ainda em mim, veja, veja sem piedade, apenas veja e guarde esta imagem... Quantos romances lemos juntos, você lembra? Lembra? Ainda consegue lembrar-se de alguma coisa vivida por nós ou tudo já foi deletado como um botão poderoso que num simples clicar joga tudo na lixeira do esquecimento? Quantos romances, diga... Um, dois, quantos? Romeu e Julieta? O amor que ia além da morte? Um ser capaz de morrer pelo outro? Um amor capaz de vencer as mazelas sociais? E chegamos a desejar que assim fosse o nosso sentimento, como romance do Shakespeare, sentimento de alma que transpassa o corpo, que está na carne pulsante, carne gritando de amor, um pelo outro, ligados, em elos e a nossa aliança de sangue como no romance da Moreninha, lembra-se? Lembra-se quando cortamos nossos lábios em beijos mordidos para compactuarmos amor, eterno, amor e como sorvíamos freneticamente os nossos sangues e não aceitávamos a poesia Viniciana que dizia: “... eterno enquanto dure...", porque acreditávamos no eterno na etimologia da palavra, o amor do Tristão e da Isolda, que renunciaríamos a tudo e a todos em nome de nós mesmos, só nós bastávamos, só nós... É o meu ciúme que me descontrola, eu sei, sou consciente, ciúme, ciúme descontrolado, esse desejo de posse como propriedade privada, esse meu controle desenfreado de cada passo dado, de tornar você o eixo condutor de minha vida. Você como o norteador do meu pensamento... Tudo em prol de; e nós nos conhecemos tão bem, sabemos como guardar as cuecas, as meias, as camisas da diária. Sabemos a quantidade de sal da comida e a luminosidade do quarto e o som ambiente. Sabemos como guardar as escovas de dente no banheiro e sabemos até quando um usa a escova do outro, só para termos o prazer de sentir mais de perto o hálito, a comunhão de...Sabemos a temperatura ideal da água do chuveiro que lavava nossos corpos depois de uma boa noitada de amor. O sabonete que corríamos corpo acima, corpo abaixo, grudados, laçados e a água morna, morna água que nos deixava lassos, felizes por estarmos ali naquele momento só nosso, sabíamos até dos nossos desafetos e como um poderia desamarrar os laços do sapato um do outro. E achávamos que éramos felizes, se um soltasse um pum diferente, sabíamos que a dieta era quebrada e que algo de estranho tínhamos comido, sabíamos, sabíamos, sabíamos e agora não sabemos mais de nada.Somos estranhos, dois estranhos, um estranho frente a outro estranho. Dez anos de convivência e dois plenos estranhos a monologar... Eu sempre soube disse, eu sempre dizia que não ia dar certo. Nunca acreditei mesmo que seria eterno, para sempre, porque para sempre só os finais de contos de fada... A sua jovialidade, a vontade das novas descobertas, eu sabia e você sabe disso, você e sua insistência e eu me deixei levar. Nunca me preparei para... Vá, vá de uma única vez, vá e não volte mais, não esqueça nada e vire o rosto quando passar por mim na rua... As coisas existem para serem, se não são é porque a existência é algo duvidoso e essa música que me faz recordar, essa música que me enche os ouvidos de... Talvez você já nem se lembre mais. É estranho não? Tudo é muito estranho, ainda ontem deitados um ao lado do outro e quantos planos futuros. Quantas vezes transamos pensando está fazendo amor? E uma outra pessoa deitada no nosso meio e um outro ser instalado em nosso meio e o pensamento que julgava ser somente em mim talvez já fosse projetar para ser de outrem, humilhação. Essa música, escute, a música que toma conta do espaço, que nos abre os pólos, que nos transporta e a porta, abra, saia, saia, abra essa droga de porta, merda de porta, porra de porta e vá quebrar a cara num outro lar, ao lado de um outro desconhecido e o faço iludido como você me iludiu, vá e faça o mesmo jogo, use do mesmo artifício, engane, faça-o sonhar. Apresente o vinho, dance, faça strep, suba em pontos altos, transe ao ar livre, choque, chame a atenção, mande flores, mande chocolate e lata, lata de amor feito cachorro doido e depois aplique um pé no traseiro como está fazendo comigo agora. Eu odeio o amor, odeio sentir-me amando, odeio ter me entregado a esse sentimento que me domina e a vontade de estar ao seu lado. De sentir novamente o hálito quente de seus beijos... Veja!!! Veja, chegou o roteiro de nossa viagem... Você quebrou o pacto, mudou a regra, já vai? Não quer saber, espera, por favor, espera, eu não vou chorar, não vou, essa água que escorre dos meus olhos não são lágrimas, espera, por favor, espera, não abre ainda a porta, espera, por favor, não estou chorando, é essa terrível dor de cabeça, espera, escuta, você precisa escutar, o roteiro, a viagem, não, não terá sermão, veja o roteiro, veja... Por favor, por favor, escuta o que tenho pra te dizer... Para sempre, para sempre amor, amor, amor... Ai, como dói essa pancada de porta que se fecha e não se abre mais...