MITOS ANÔNIMOS DA MINHA INFÂNCIA
1) Zé Limoeiro (ou Zé do Limão) – Tocava violão como poucos. Cantava muito, muito mesmo, mas insuperável mesmo ele se tornava quando tomava um violão às mãos. Minha mãe não gostava muito dele porque o achava meio intrujão, perguntador demais. A velha era baiana, mas tinha essa mineirice de procedimentos; jamais perguntava demais, falava só o necessário, acudia só àqueles que pediam ajuda, era caridosa mas extremamente cética. O Zé, ao contrário, era falastrão, bom bebedor, trocador de conversa fiada. Vi-o deixar seus sacos de limão jogados de lado muitas vezes, só porque tinha encontrado alguém com um violão à solta. Partiu cedo, por culpa da cachaça, acho que mais ou menos com uns 40, 45 anos. Talvez nem isso...
2) Paulinho Litrão – diziam as (más?) línguas que ele tinha sido lateral esquerdo do juniores do Corinthians, mas tinha caído do trem e ficara abilolado. Não sei não... lendas urbanas pululam com muitíssima facilidade. O fato é que ele não falava com ninguém, comia restos de comida nos baldes de lixo e do fim das feiras. Usava uma blusa “azul-azul” de tão suja, uma calça de tergal que nunca conseguimos saber qual a cor original, e um sapato furado no dedão. Se alguém tentava puxar conversava com ele, era objetivo e rápido: “ora, vá tomar no...”. Já foi dessa pra outra.
3) Peninha – andava com um cajado bem longo e um gorrinho de lã, mesmo nos dias de calor. Diziam que tinha perdido a família num acidente de carro, por isso vivia dizendo entredentes “que peninha!”, daí a razão do apelido. Era um negão bem alto e impunha um certo ar de respeito e solenidade por onde passava, enquanto andava devagar com um saco sujo às costas. Vivia como o Paulinho, de restos de comida catados do lixo e das feiras. Já partiu.
4) Bodorinha – Era a bicha mais tresloucada das várias que tinha(e têm) na vila. Apesar de homofóbica radical, minha mãe gostava da "menina", pois era espevitada, enxerida, conversadeira e brincalhona. Tinha o costume de andar sempre no meio da via, entre os carros. Não media palavras na hora de mexer com alguém na rua, e era motivo de chacota entre a molecada. Parávamos o futebol no campinho quando ela passava, só para vê-la em seu rebolado pra lá de figurativo. Morreu. Dizem que de aids.
5) Walmyk – jogador de capoeira, agitado e brigão, era o “figura”. Tinha tanto sex-appeal quanto "uma certa facilidade" para arrumar confusão. Gostávamos de sua companhia, não pelos rolos em que se metia, mas porque era um bom contador de histórias. E também porque ele e seus irmãos colecionavam cobras e outros animais peçonhentos, em formol ou empalhados. Gostávamos de ir lá ver aquele museu zootécnico informal, no quartinho do fundo do quintal. Hoje, parece-me que se converteu ao protestantismo e vive pros lados de Guarulhos.(nota complementar: segundo nota de seu irmão, o escritor e teatrólogo Luka Magalhães - que também faz parte desta comunidade, o Recanto das Letras, faleceu em nov/08 aos 41 anos, em Guarulhos, SP)
6) Seu Abel – eu, moleque não conseguia entender como um velho (e crente), pudesse ser ao mesmo tempo excelente letrista e cartazista, além de exímio piloto de lambretas. Usava um óculos duro de lentes grossas e era de uma paciência zen. Seus filhos, ao contrário, foram um caso à parte. Salvo engano, não deram pra grande coisa (tomara que as fofocas de vila tenham sido mentirosas). Seu Abel não sabe, mas ficar vendo ele trabalhar cada letra num muro ou num toldo, ensinaram a mim muito da calma que hoje invoco. Algo tipo aquela lição brejeira do sr. Myiagi ao jovem Daniel LaRusso, no filme Karatê Kid.
7) Narizinho Vermelho - "Agora que você vai para o primeiro ano, cuidado com o bando Narizinho Vermelho", asseverou meu irmão, dono de mim, no alto de seus 9 anos. Segundo ele, o grupo assolava o recreio da escola, tomando o lanche dos outros alunos, além de afanar lápis, borracha e apontador. Minha mãe, conhecedora dos fatos, ratificou o meu medo, implorando com os olhos úmidos, que "tomasse todo o cuidado do mundo" e que "Jesus me protegesse". E lá fui com minha lancheira - é, sou do tempo que se levava lancheira para a escola primária, com sanduíche de mortadela enrolado em panos de prato alvíssimos, acompanhado da garrafinha de Q-Refresco. E, afinal, quem era o tal que liderava um grupo de assalto e assombrou os meus sonhos com sua alcunha de líder destemido e forte? Um garoto branquicela, magrelo que só, com o nariz e as maçãs do rosto bem rosadas(daí o apelido), que gostava de brincar de pega-pega e puxar o cabelo das meninas no páteo. Mas isso só percebi depois de meses de rotineira observação, acompanhando de longe seus gestos e "liderança", sobre um grupo de moleques que só sabiam rir, dar pinotes e empurrões enquanto as professoras estavam distraídas.
8) Dez - bandidinho do lugar, esse "dominava" a área quando eu era adolescente. Mas era mais hilário que feroz, com seu rosto rasgado por uma funda cicatriz e sua voz esganiçada, que infundiam mais horror que medo nas pessoas. Tinha a mania de sair correndo toda vez que via uma viatura da polícia. Quando era alcançado, tomava um monte de petelecos na cabeça e bordoadas pelo corpo todo, principalmente quando os "gambés" percebiam que toda a fuga era mais um lance de hedonismo masoquista inexplicável para a maioria. Popularmente, ficou conhecido na região toda como o "trouxa que gosta de apanhar, só para aparecer".
9) Luizinho - jogador de futebol dos bons, é um desses talentos raros que não sabemos explicar porque não "vingaram" dentro dos campos. Lembro-me que no campo da "Pracinha", reunia-mos aos domingos à tarde, vários, muitos, tantos, só para vê-lo jogar e desfilar sua habilidade nata. Alguns dos meus colegas bem que tentavam imitá-lo nos campinhos adjacentes, mas... Para ambientá-lo, digo que seu futebol exibia a mesma categoria do Alex, ex-Palmeiras, Flamengo e Cruzeiro. Ainda hoje, quando o encontro nas ruas do bairro, ou quando o vejo nas batucadas nos botecos da vila, fico a invejar sua perna esquerda.