Nordestinidade: A Cruz em forma de Mandacaru
Quando desci no aeroporto internacional de Recife para atender ao convite de um certo Bispo de antenome Oséias, pastor da Betesda de Caruaru e responsável por nossas comunidades no Estado de Pernambuco, comecei a comparar ambas as cidades a todas as que eu já havia estado antes. Embora não fosse minha primeira vez ali, meu olhar se lançou sobre aquela cidade mais analiticamente do que antes. Levei uma série de mensagens em uma festa chamada Junho com Jesus, que acontece exatamente no momento cultural mais forte da região. A cidade de Oséias pulsa nordestinidade no calor humano de uma gente que promove verdadeiras delícias relacionais.
O Brasil é esplendidamente plural. Pelo respeito que tenho a essa diversidade, não vejo porque centralizar a cultura em seu valor aos documentos históricos ou monumentos apenas. Muitos deles, inclusive produzidos nas regiões mais ricas do país. Os valores mais importantes da vida são irreproduzíveis com exatidão pela caneta, imagem, ou edição de vídeo. O aroma das flores sentido pelo poeta não podem ser cheirados pelo leitor; há cores vistas pelo pintor que este não conseguiu reproduzir na aquarela e há cenas que o documentarista perdeu porque a câmera estava virada para o lugar errado. E esses detalhes que escapam são o que nos compungem a desfrutar mais intensamente de coisas boas. Por causa deles, temos que viver experiências mil para conseguir descrever duzentas.
Hoje, a mídia nacional olha mais para nós, nordestinos. Infelizmente, o que acompanho do material produzido tende, em sua maioria, mostrar caricaturas. E entendo ser necessário para as emissoras e revistas. A caricatura produz mais audiência e vendas do que a fotografia. Em outro extremo, nossa pobreza tende a ser mostrada exaustivamente para justificar projetos que dêem visibilidade aos Governos estaduais e federal, ou levar às lágrimas a algum telespectador abastado, sem, necessariamente trazer mudança. Apesar de criticar fortemente, fico agradecido pelos resultados positivos que essa publicidade traz para a região.
O nordeste é mais. O que seria da história documentada, dos quadros pintados em todas as épocas ou dos documentários, se não houvesse pessoas, gente, povo, indivíduos? Toda história contada precisa de personagens. E o nordestino é um personagem riquíssimo. Em Caruaru vi a força de um jeito de ser. E nessa força, eu olho para a Cruz. E vejo uma Palestina agreste e um Cristo caruaruense. A idéia que faço da geografia, clima e povo da região do oriente médio, em que Jesus viveu, é semelhante àquela que eu tenho do nordestino. O patriotismo frágil; a subjugação ao outro mais forte, em vários sentidos, do que si; a necessidade de uma auto-afirmação apesar de; a orientação para um futuro incerto, tanto da região, quanto dos indivíduos e a forte carga cultural fazem-me enxergá-los irmãos.
Sendo assim, traslade-se comigo em minha imaginação.
Eu subi ao monte da crucificação, como se eu fosse um transeunte que não conseguiu conviver com os acontecimentos antecessores à morte de Jesus. De repente, cheguei atrasado para o evento da crucificação. Ao olhar do pé daquele instrumento de tortura, somente pude ver uma pessoa ao lado de outros aparentemente iguais. Na verdade, como a princípio eu não ouvira nada a respeito da causa da sua tortura, para mim, aquele era mais um malfeitor. O que me chamou a atenção foi a reação das pessoas em torno de sua morte. Havia uma comoção considerável. Por isso, comecei a perceber que tratava-se de alguém que havia afetado aquelas pessoas muito profundamente.
Enquanto alguns homens tiravam aquele, que estava na cruz do meio, pedi para ajudar e subi, com uma escada, na estaca onde ele estava cravado. Posicionei-me no ponto alto, e comecei a olhar em direção ao caminho que esse palestino houvera trafegado. Mais proximamente ao monte da caveira onde eu estava, vi sangue, como se esse homem viesse se desfazendo pela estrada. Deduzi que sua tortura não começara ali, mas ele devera ter sido chicoteado e apanhado muito, em outro lugar.
Olhando para mais adiante, como quem tenta desvendar o passado, não consegui ver nada. Não pude ver nenhuma construção ou monumento feito em homenagem daquele torturado, ou por ele próprio. Nenhum sinal de nenhuma espécie. Tive que descer para procurar algum indício histórico de seus atos. Eis o que pude ver, à medida que caminhava e perguntava: rostos. Gente que o conheceu. Entendi que os monumentos ou construções do tal carpinteiro estavam nas memórias de quem o conheceu. E que boas memórias! Tentaram descrever seu jeito de andar, suas frases mais repetidas, onde ele costumava ficar, como era o seu sorriso e como franzia a testa quando ficava irado. Falaram até de sua gargalhada quando, certa vez, dissera: “Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado.”
A vida daquele rapaz estava exposta no brilho daqueles olhares.
Não são os monumentos ou documentos o que nos registram ou provam que existimos. Nossa relevância é reconhecida na profundidade com que nos afetamos mutuamente. O povo de caruaru me falou, sem discursos que Jesus está aqui. Ele anda com meus pés e se parece comigo, enquanto tento me parecer com ele. Dessa forma, olhei novamente para a cruz, em minha imaginação. E ela tinha a forma de um mandacaru. E as suas marcas estão também em mãos calejadas de homens e mulheres que lutam para existir, mas conseguem construir vida que os livros não escrevem. Convido você que não conhece, para visitar Caruaru e andar pelas ruas e conhecer aquele povo em quem vemos Deus encarnado. Ali, Jesus é nordestino.
EDNEY MELO