A CRIANÇA QUE HÁ EM TODOS NÓS
Quando eu era criança, não havia o Dia da Criança.
A gente ganhava presente somente no Natal, e era um presente só, aquele que acreditávamos ser trazido pelo Papai Noel. No aniversário também podia-se ganhar presentes, mas como eu nasci em dezembro, no dia dos meus anos, eu ganhava uma festinha familiar, em casa, com a presença de tios e primos principalmente. O presente era a festa. Nada de festas em bufês ou clubes, nada de equipamentos de recreação, nada de personagens de historinhas infantis, nada de monitores... Havia aqueles palitinhos com um pedaço de queijo, geralmente mineiro, um quadradinho de presunto e uma rodela de azeitona. Espetados num mamão verde, que podia ficar chique quando envolto num papel-alumínio. Podia haver ainda salgadinhos, geralmente pasteizinhos e “esfihas”, e principalmente empadinhas. Minha mãe gostava de sofisticar um pouco a coisa, e deliciava os convidados com uns espetinhos no palito, feitos de ameixa preta e “bacon”.Quando a festa era boa mesmo podia haver sanduíche de pão-de-queijo com pernil. Depois do “Parabéns a você” era servido o bolo, geralmente coberto de glacê branco, podendo, nos casos mais criativos, ter detalhes coloridos com anilina, azul nos aniversários dos meninos e rosa nos das meninas. O recheio podia ser de doce de leite, e ainda me lembro do sabor de um recheio desses, com ameixas pretas no meio. Nas bordas do bolo podia haver umas bolinhas prateadas que eu detestava, pois eram duras ao mastigar...Não se mandava fazer o bolo fora, geralmente eram as mães, as tias, as avós ou as madrinhas que faziam.As mais criativas podiam decorar o bolo com fitas de côco, o nome do aniversariante, ou mesmo com o escudo do seu time ... Lembro muito de fazendinhas decorando esses bolos, com casinhas, vaquinhas, cavalinhos e bonequinhos de plástico. Depois vinham os doces... Gelatina de pinga, cortada em quadradinhos e coberta com açúcar refinado fazia o maior sucesso nas festas da minha casa... Doce de leite, pé de moleque, doce de abóbora, doce de mamão, doce de batata-roxa, cortados em pedacinhos, eram disputados pelos adultos e crianças... E havia ainda os beijinhos e os cajuzinhos... Ninguém tinha tanta preocupação em não engordar, e os brigadeiros ainda não faziam sucesso como hoje...
E os presentes? Geralmente as tias davam roupas, para a alegria das mães e o ódio das crianças... Ganhava-se muita meia, muito lenço e muita cueca... Brinquedos eram muito poucos... Eu tinha uns parentes que sempre chegavam com um envelopinho branco com uma nota dentro, acho que o equivalente a uns vinte reais de hoje... Quando eu cresci um pouco, rezava para ganhar livros e discos. E continuava ganhando meias, lenços e cuecas...
Acreditei em Papai Noel até uns nove anos de idade... Era bom demais procurar me comportar bem durante todo o ano, para no fim merecer o tão sonhado presente! E nem sempre me comportava, mas sempre ganhava o presente almejado...De todos os presentes que ganhei do Papai Noel, só me lembro de um: um avião vermelho no qual se podia entrar, movido a pedal... Depois lembro-me de, aos dez anos, ter ganho uma coleção de livros chamada “Alvorada da Vida”. Eram livros da literatura mundial adaptados para a juventude. Foi meu primeiro contato com as Letras, e foi quando descobri que era meu pai que comprava os presentes de Natal, ao encontrar a caixa com os livros guardada num armário.
Então, além do aniversário e do Natal, as crianças do meu tempo não ganhavam presentes como hoje, e por isso tudo tinha muito mais valor. Esperava-se o Natal com ansiedade. Não havia a comilança de hoje em dia. Lembro-me de ir à igreja na véspera do Natal, depois ir dormir cedo para de manhã pular da cama e ir até a sala e ver se o Papai Noel havia passado. Depois, ia para a porta de casa para exibir o presente e ver o que os amigos da rua haviam ganhado.
Depois, era esperar pelo próximo Natal. Como demorava para chegar!
Não sei quando foi instituído o Dia da Criança e seus desdobramentos, como a Semana do Saco Cheio e as viagens para Porto Seguro e Caldas Novas, hábitos já arraigados dos francanos... Meus filhos, enquanto crianças, tiveram seus Dias da Criança, que eu procurei fazer felizes na medida do possível. Seria bom se, ao invés do estímulo ao consumismo, essa nova instituição pudesse trazer às crianças o ensinamento do respeito aos mais velhos, aos professores, e ao próprio planeta em que vivemos, na preocupação de formar cidadãos que futuramente sustentarão os pilares da sociedade. E isso não cabe a ninguém mais além dos pais, que andam esquecidos que educação se aprende em casa e se aplica na escola...
Hermes Falleiros
Franca, 09 de outubro de 2008.