ESPELHO, ESPELHO MEU...

Lembrando o poeta e ficcionista Jorge Luís Borges, (que tinha horror dos espelhos)diria, que devo à conjunção de um espelho e de uma observação feita pelo meu neto Daniel, não a descoberta de Uqbar, mas o tema para a crônica de hoje.

E foi assim que tudo começou... Do armário do banheiro o espelho me espreitava. A observação de meu neto foi a de que eu estava ficando “velhinha”. Ficando “velhinha”... Encaro o espelho; a imagem refletida constata o que disse Daniel. Diante de mim a sombra ameaçadora do tempo, que passou deixando no meu rosto as suas marcas indeléveis. Por que só agora a percepção concreto do fato? Acho que é porque de há muito perdi o hábito de me olhar no espelho, não que eu, feito Jorge Luiz Borges, tenha terror dos espelhos; ou quem sabe, talvez eu me via, só que não me enxergava. Também não sou tão pertinaz quanto a madrasta de Branca de Neve, não tenho a mesma intimidade, não o trato por espelho , espelho meu... Sem nenhum menosprezo sei muito bem a resposta que ele me daria, mesmo estando Branca de Neve de coração arrancado, morta e enterrada.

Ah, os netos que tanto os amo! O que fazer - indago para a senhora à minha frente , o que fazer para camuflar esta velhice que toma conta de mim e desagrada a Daniel? A senhora sorriu, retirou os óculos, para colocá-los em seguida, sem eles nada enxergava. Virou o rosto para um lado, para o outro, pensou no doutor Pitanguí... Será que ele lhe recomendaria o tal do lifting? E a doutora que cuidava dos olhos substituiria os pesados óculos por lentes de contato. Cairia bem tornar os cabelos tão negros quanto as asas da graúna?

De cabelos negros, rosto levantado, lentes de contato. Fechei os olhos e assim me imaginei. Frustração! Assim não me aceitei. Pedi de volta a minha velhice, os meus cabelos embranquecidos, as minhas rugas. Não aceito nem as lentes de contato. O meu neto Daniel, que se acostume com a minha imagem de velhinha. E já que sou assumida, vou mais é meditar sobre o que disse certa vez a Carla Camurati: “ A gente tem que pensar na velhice de maneira legal. Você tem que saber ter bom humor para passar por ela”. E nada que se firmar no que disse Terêncio: “senectus ipsa morbus est” ( a própria velhice já é uma doença .

Como já foi dito, devidamente assumida e ainda sem os sintomas da esclerose arterial, cá estou de penhoar, xale nos ombros caídos, óculos na ponta do nariz, com os pés enfiados nos chinelos felpudos, sentada numa cadeira de balanço, por sobre as pernas uma manta quadriculada, com o aparelho de surdez ligado, tentando ouvir “spirrituals, a música religiosa dos escravos do Sul dos Estados Unidos na voz da soprano Jassye Norman, que se a memória fraca não me falha, disse ao ser acusada de estar em decadência vocal: “ Assim como pagar imposto é ruim mas tem também algo de bom, os críticos devem servir para alguma coisa. Só não descobri para quê.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 15/10/2008
Código do texto: T1229964
Classificação de conteúdo: seguro