O CABRITO QUE NÃO ERA CABRITO

O CABRITO QUE NÃO ERA CABRITO

Quem leu meu livro Entremeios de um caminho que não terá sido grande o número, mas seletos os leitores, deve-se lembrar de uma história contada à maneira de ficção, mas que em verdade trata-se de uma história real, que eu por tolo pudor, àquela altura, assim procedi. Meu avô materno, Benjamin, grande contador de histórias, aos serões, à roda da lareira, ao calor do fogo de um bom cepo de carvalho ou madeira de algum velho sobreiro, que davam braseiros esplêndidos e de grande duração, excelentes no aquecimento das longas e frias noites de inverno. Depois da ceia rezava-se o terço e lia-se alguma passagem da História Sagrada, que era como era denominada a Bíblia naqueles, salvo erro, (nunca me saiu da memória a história da longevidade de certos personagens bíblicos e, em particular a de Matusalém, que terá durado 969 anos. Teria sido filho de Enoque e avô de Noé. O ano de sua morte coincidiria com a ocasião do dilúvio embora isto não seja mencionado na Bíblia, sendo apenas um cálculo matemático considerando que o dilúvio ocorreu quando Noé tinha 600 anos ). Esse era o costume na casa avoenga quer do lado materno, como do lado paterno, naqueles bons tempos do antigamente, após, vinham as histórias, e que histórias, pena eu ser tão pequeno e não ter tido a capacidade de guardar toda aquela riqueza na minha ainda tenra mente.

Para animar aqueles serões e, dar mais calor à narração das histórias, tomava-se uns bons canecos do bom tinto, acompanhado de alguma chouriça assada sob as brasas da lareira, envoltas em folhas de couve, ou as deliciosas castanhas assadas, que naquele tempo ainda havia os centenários castanheiros naquelas terras, por entre ribeiras e montes.

Enquanto os homens deitavam conversa fora para matar o tempo, as mulheres com sua roca enfiada na cintura iam rodopiando, rodopiando o respectivo fuso, criando maçarocas de linho ou de lã, para após outros tratos, feitos pelas dobadoiras, sarilhos, enfim, levados ao tear onde seriam transformados em caprichosos tecidos pelas mesmas mãos e pés, em sincronia perfeita de força e delicadeza, em brancos lençóis, e toalhas de linho e cobertas de lã, ou até calças e casacos para uso de alguns homens, tecido mais resistente no trabalho duro do campo ou, a estamenha com que eram confeccionadas as capuchas, usadas especialmente, pelas poucas pastoras de cabras com que se protegiam das intempéries especialmente do inverno, na guarda de seus rebanhos por aqueles montes.

Mas vamos à estória do “cabrito que não era cabrito”. Naqueles tempos havia um número razoável de rebanhos de cabras que se alimentavam do pasto natural daqueles montes, por outro lado, essas mesmas cabras também serviam de repasto aos lobos que havia por ali em pequenas matilhas.

Muitas são as histórias de pastoras, que se bateram ajudadas pelos seus pequenos, mas valentes cães. Ao contrário das bandas lá da serra da Estrela cujos rebanhos de ovelhas até hoje são guardados por homens pastores, sempre muito bem acompanhados por seus grandes e fieis cães, uma bela raça de cães pastores, chamados de cães da Serra da Estrela, que usam coleiras reforçadas de cravos metálicos pontiagudos para defender o pescoço dos mesmos das mordidas dos lobos.

De Vilamendo, terra daquele que viria a ser meu avô materno de nome Benjamim, até à Guístola, terra da que igualmente viria a ser a minha avó materna, e madrinha Tereza, naquele tempo era uma jornada além de considerável distância, bastante cansativa. Seus caminhos acompanhavam a geografia do terreno de altos e baixos, pois é região de serra, e em muitos de seus trechos ladeados por altos matagais, que bem poderiam servir para refugio de lobos. À noite a luz era a das estrelas ou da lua, e quando estas se escondiam, as noites ficavam escuras como breu. Quando isso acontecia eram usadas lanternas, alimentadas a petróleo, (querosene), e antes deste, por azeite de oliveira, e mais tarde pelos chamados petromax de luz mais forte e clara, isto já nas barbas do advento da eletricidade. Portanto andar por tais caminhos à noite só por grande necessidade, ou coisa de igual premência. Não que se tivesse notícia de alguma vez alguém ter sido atacado por algum daqueles lobos, o certo é que havia esse temor, lendas que se foram criando ao passar dos tempos. Os lobos só atacam outros animais quando tem fome, e talvez nunca ao homem. Como se não bastasse toda esses “embróglios”, havia histórias de assombração de uma casa arruinada à beira do caminho por onde inevitavelmente tinha que se passar, e ainda a lenda de uma princesa moura encantada, que teria vivido no Algião, lugar que ficava quase ao cimo e antes de Guístola. Dizia a lenda que, em certas noites aquela princesa moura costumava perambular por lá com seus lamentos.

Mas além das necessidades imprevistas, tem aquelas que só o coração dum jovem apaixonado sabe sentir, desconhecer medos, fantasmas ou ferozes lobos. Pois era o caso do jovem Benjamim que andava de namoricos com aquela que viria a ser sua esposa, a bela jovem Teresa. E imaginem! Só para ter o prazer, de poder estar perto dela, por poucos instantes, e sequer poder tocá-la, pois naquele tempo a jovem namorada estava sempre em companhia da mãe, portanto nem um beijinho furtivo, ou outros arroubos amorosos. Tais coisas só depois do casamento consumado. Aquilo sim é que era amor!...

Como Benjamim ajudava seu pai nas lides do campo durante todo o dia, só lhe restava então a noite, ou ao domingo para poder estar junto da doce amada. Mas só ao domingo era muito pouco para um jovem apaixonado. Então o remédio era enfrentar todos aqueles obstáculos. - afinal era ele homem, ou não era homem de verdade?

E assim, lá ia o feliz e noctívago enamorado enfrentando dia após dia, ou melhor, noite após noite, tais noctívagas inquietações.

Mas certa noite, não se sabe se pelo cansaço, ou se por aquelas viagens já se lhe configurarem monótonas, o jovem Benjamim sentiu apossar-se dele certo desânimo, e uma espécie de medo que nunca antes havia sentido. Queria pensar nos doces olhos de sua amada Teresa, luzes do seu solitário e cansativo caminho, mas, outros pensamentos iam-lhe minando e afrouxando o ânimo.

Ao cimo de uma comprida ladeira, à beira do caminho, como em outros solitários caminhos, era costume naqueles já recuados tempos, havia umas “alminhas”, por quem as pessoas piedosamente rezavam quando por ali passavam e, assim aliviá-las das suas purgatórias penas. Foi um pouco antes dessa capelinha, que inesperadamente lhe apareceu um pobre cabritinho, berrando como se se tivesse desgarrado de sua mãe cabra. Sabendo que se abandonasse o animalzinho à própria sorte, fatalmente o pobrezinho iria servir de repasto para algum daqueles lobos famintos que certamente andariam a vadiar por ali. Então, Benjamim qual bom pastor agarra o animalzinho e, o coloca sobre seus ombros. Porém dados alguns passos, o inusitado, o incrível, o fantasmagórico aconteceu. Aquele mansinho cabrito solta-lhe uma grande mijada, fedendo a enxofre e todos os cheiros nauseabundos imagináveis; dá um pulo e um grande e demoníaco berro que aos ouvidos de nosso estupefato viandante soou como se vindo das profundezas infernais, deixando-o transido de medo, e em grande alvoroço a toda a bicharada que por ali pernoitava.

O desafortunado “Romeu” por um instante pensou, ser aquele seu fim. Mas passados os primeiros instantes de tão terrível susto, enfim, retomou forças, não para prosseguir para frente, e começa então uma louca corrida de volta para sua casa, agora a uma distância imensurável!... Invocou São Tomé padroeiro da Guístola, a Santa Bárbara apaziguadora das trovoadas e tempestades, padroeira do lugar da Felgueira, que fica lá para aquelas bandas e, aos outros santos de sua devoção que lhe vieram à mente.

Mijado e borrado, que ninguém é de ferro ante tais perigos, enceta uma desesperada e louca corrida. Cai aqui, levanta-se ali, lá vai Benjamim, por caminhos que lhe parecia, não terem fim.

Eduardo de Almeida Farias

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 14/10/2008
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