4 MADRUGADA BÊBADA DE SILÊNCIO

Ontem meu condor voou mais alto. Ensaiou seu canto inusitado. Chuveirando nas asas, feito beija-flor, ele pousou em ti, sem intermitência. Foi como ter ficado o dia inteiro acuando a tua presença, à deriva da enseada da minh’alma. O dia foi ontem, porém, hoje, apenas, é que me dou cor de mim: teu corpo de éter, e também meu corpo etéreo, ambos, agora, hibernam sob um toró de solidão.

Em clima de luar, tu à distância, e eu reencontrar-me contigo. Aposento meu ócio, por força boto-o de férias, abro picada no mato da rotina. Para isto se dar, mulher-musa, te estou a garatujar escrita “démodé”, carregada nos adjetivos, com a finalidade única de expressar-te a coisa mais nova do universo: (...). Dito o que foi dito, confirmada está, em edital de verdade, minha linguagem oblíqua, até subterrânea, mas ternamente embebida de generosidade. Aliás, calor de afeto, como convém a todo guerrilheiro metido com assuntos de benquerença humana.

Agora mesmo, no igual, ressabiado e esperançoso pela metade, navega ao largo da baía da espera este teu peregrino de rumo incerto. Caroável à tirania da saudade, no pontual do instante, a estrela da inspiração me dá de proa com os rochedos da insônia. E já são mais que trinta minutos da madrugada.

Nem supor, meio à lua que te pastoreia a florada do sono, voo à-toa de aves noturnas. Nem um latir caviloso de cães. Nem automóveis fonfonando à toa. Dentre as sombras do jambo, só a inodora meditação do calado carbono da folhagem.

Madrinha da prata e do chumbo, de viés, a noite enorme. Mas a noite sempre envelhece ao tom da juventude das auroras. E logo, logo a nova manhã estará por vir. De céu níveo, a diaba anda bonitona que nem carícia mão femínea. Mas cheia de espera, e cheinha de poemas de ausência – a tua, pessoalmente. Ah, madrugada f. d. p. de doída está fazendo, bêbada de silêncio!

Assim, em sossego, madrugada alguma estampa visagem pelos caminhos. Até risco de luz de asteroide não lanha a bacia do firmamento. E como tu podes deduzir, a Estrada de São Tiago é ver um riacho de leite, sem mosca no limbo da corrente. Tua silhueta, sim. De tão indelével, de tão intangível, doi teu perfil na tevê da lembrança. E meus olhos de plantão, no correr do leito da folha em branco, roçam teus lindos cabelos de metro e meio.

Então, de repente, o condor deste insone viaja, outra vez, bem a teu lado, no bojo daquele ônibus andarilho de quantos tempos atrás?

Fort., 13/10/2008

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 13/10/2008
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T1225423
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.