VAGAMUNDO KID EM: O DIA DAS CRIANÇAS

Um dia desses, eu era bem pequenino, correndo pelas ruas da Paraíba, já ensaiando ser um andarilho.

Foi em um doze de outubro que ganhei um presente que me transformaria no Vagamundo Kid, a semente do viajante que viria a ser um dia.

Família pobre não comemora Dia das Crianças, assim, eu não sabia o que estava perdendo, só quando a escola me lembrava que nesse dia, todas as crianças ganhavam brinquedos; e eu não era uma dessas crianças.

Eu era menino sem brinquedo, mas com imaginação multiforme. Minhas caminhadas pela cidade eram jornadas épicas, onde meus heróis de papel salvavam o mundo dos grandes vilões. Não precisava de playmobil ou de miniaturas dos meus heróis favoritos; se eu podia com um papel, um lápis e alguns riscos, criar o herói que quisesse, bastava ter uma imaginação sem limites.

Meus heróis de papel cabiam todos no meu bolso, ou dentro do meu caderno; ninguém os desejava, assim, não corria risco de furto de olhos invejosos de menino, coisa comum entre meninos que não eram criativos; e como eu não esperava presente algum, não entendia a razão pela qual meu amigo da classe reclamava do presente que ganhou:

- Meu pai me deu um Atlas! Um Atlas! Como posso brincar com um Atlas? - reclamou Helânio, segundo ele, tinha razão, afinal já havia ganhado os bonecos dos Comandos em Ação, do He-man, banco imobiliário, e centenas de cartuchos para o seu Atari - Vou jogar essa droga fora! Qué procê?

O Atlas era lindo. Tinha uma capa preta, com a imagem do planeta, era grosso e pesava uns dois quilos, achava eu; e era grande, maior que os livros da escola.

- Última chance? Qué?

Ninguém notou em casa, que aquela tarde, eu cheguei com um livro novo. Não era costume de meus familiares repararem em meus livros ou cadernos. Após o almoço, coloquei "meu" Atlas novo sobre a mesa e pela primeira vez, viajei pelo mundo.

Já havia visto um Atlas anteriormente na escola, mas não contava, pois tudo o que fazemos por obrigação, a memória não cativa e guarda. Fui de uma América a outra, como na música do Toquinho, em um segundo. Atravessei o Atlântico e invadi o velho mundo, como um pirata dos sete mares. Viajei pela Europa e atravessei a Rússia, indo parar no frio da Sibéria; caminhei pelas muralhas da China, e surfei com os aborígines nas ondas da Austrália. Pequei carona com uma gaivota e atravessei o Pacifico, voltando para casa, mas antes passando e ficando um pouco, lá pelo fim do mundo, em Ushuaia, a Terra do Fogo.

Jurei sob aquele livro aberto na mesa, que um dia, faria essa viagem de verdade. Conheceria todos esses continentes, oceanos, culturas e sociedades; e fechei o livro, com os olhos brilhando de sonhos a serem realizados. Palavra de Vagamundo Kid!

Ficaria a tarde toda, pensando no Haiti ou nas praias de Goa, se não ouvisse alguém batendo na porta da casa da minha vó. Era o pai de Helânio, com o moleque arrastado pela orelha, perguntando para a minha vó, se o tal amiguinho neguinho do seu filho querido estava em casa.

Antes não estivesse.

Minha orelha sofreu a mesma pena, mas punição não merecida; afinal eu não havia pedido nada; e agora sofria o castigo dos presentes dados entre meninos, sem um adulto aprovando.

Entreguei o livro, com muito custo, dado não era roubado; mas meu amor a minha orelha esquerda era maior que o meu amor iniciante pelo mundo.

Helânio teve de volta o seu livro; e eu fiquei a semana inteira de castigo; mas era tarde demais; o Vagamundo Kid já havia nascido. Era só uma questão de tempo entre o sonho desejado e o sonho cumprido.

F.O

Nota do autor: eu havia me esquecido dessa lembrança do Atlas e do Vagamundo Kid, até essa tarde, quando ouvi num antigo CD, a canção "Amigo do Sol, Amigo da Lua" do cantor Benito di Paula. Essa canção era trilha sonora da novela global "A Gata Comeu" de 1985, e naquela epóca, tocava no rádio sem parar.

Incrível como algumas canções são máquinas do tempo...

Abaixo, a letra dessa canção:

Amigo do Sol, Amigo da Lua

Benito Di Paula

Composição: Benito Di Paula / Márcio Brandão

E ê criança presa ê, brinquedos de trapaças

Quase sem história pra contar

Você criança tão liberta me tire dessa peça,

E assim ter história pra contar

Estrela que brilha em meu peito e me leva pro céu

Em cantos cantigas canções de ninar

Me deixa no galho no galho da lua

No charme do sol pra me despertar

Estrela que brilha em meu peito e me leva pro céu

Encantos cantigas canções de ninar

Me deixa no galho no galho da lua

No charme do sol pra me despertar

Vem amigo nadar nos rios

Vem amigo plantar mais lirios

No vale no mato e no mundo vamos brincar

Vem amigo nadar nos rios

Vem amigo plantar mais lirios

No vale no mato e no mundo vamos brincar

Nota do autor:

1. Curumatara: significa menino viajante na língua tupi

2. Mais informaçôes sobre o cantor Benito de Paula e a sua discografia:

http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/benito-di-paula.asp