MORREU UMA PESSOA MUITO IMPORTANTE

MORREU UMA PESSOA MUITO IMPORTANTE

Há poucos dias, no dia 8 de outubro, morreu uma pessoa muito importante. Sozinha, sem nenhum consolo, sem nenhum acompanhante, numa enfermaria de um hospital público.

Não vou falar das outras tristes circunstâncias em que partiu. Direi apenas que esperou em estado precário nos braços do filho durante dez horas para ser atendida e que esta espera foi fatal para um organismo tão debilitado como o seu. Muitas vezes a pobreza, por força da ineficiência e desumanidade do sistema de saúde, é uma via expressa para a morte. Mas não é sobre isso que pretendo falar, pois o fato é corriqueiro e indecentemente repetitivo.

Talvez até, por desígnios que não podemos atingir, este tenha sido o caminho da Providência para retirá-la deste mundo. Portanto, deixemos o Sistema de Saúde, com todas as suas mazelas, de lado. Muitos poderão, bem melhor do que eu, tratar deste assunto.

Quero falar de D.Maria em si.

Quero falar de uma mulher extraordinária, cujo sobrenome nem sei. O que posso dizer é que Dona Maria era, para todos que tiveram a felicidade de conhecê-la, uma pessoa muito importante. Apesar de sua pobreza.

Creio que era semi-analfabeta. Via mal, não tinha os dentes e capengava de uma perna. E se alimentava mal porque sempre encontrava um jeito de distribuir o pouco que tinha. Estava sempre rodeada de crianças e pessoas. Não dava conselhos, não ministrava passes, não recebia entidades, não tinha nenhum dom aparentemente útil; nada mais fazia do que rir e brincar com as pessoas, enquanto coava um café e agradecia a Deus por estar entre elas.

Todos que dela se aproximavam, de alguma forma se sentiam agraciados. E por isto sua pequena casa estava sempre cheia, e as risadas se faziam ouvir a distancia muitas vezes até bem tarde da noite.

Nada possuía que fosse seu além de umas roupinhas, umas canecas de latão para oferecer o café, um pequeno catre onde dormia e um armário velho dado por alguém onde guardava umas poucas e velhas panelas e alguns talheres.

Pagava aluguel, destinando para este fim boa parte da pensão que recebia por morte do marido. Não possuía praticamente nada de seu e vivia virtualmente de nada.Apesar de que sempre tinha os alimentos que recebia como presente de todos que a visitavam. Mas para si guardava o absolutamente necessário. O resto dava para outros ainda mais carentes.

Não estou aqui para alardear a vida simples como solução dos problemas que nos afligem, ainda que esteja convencido que os simples são mais felizes, na medida em que nos é permitido ser feliz. Maria se fosse milionária, provavelmente seria a mesma pessoa, porque seu dom era um certo nível do espírito. Se olhássemos pelo prisma da re-encarnação, como explicada por Krishna a Arjuna no diálogo travado entre o deus e o herói na Bhagavad Gita ou por Alain Kardeck no Livro dos Espíritos, diria que Maria atingira um nível de evolução tão alto que esta fora a sua última reencarnação. Não teria mais o que purgar neste mundo.

Sinceramente não vejo nem na pobreza nem na riqueza a causa essencial do estado de espírito que aqui me refiro.Apesar de que os ricos sofrem muito quando perdem o seu bom dinheirinho. Lembro-me da parábola do homem rico. No final , Jesus, depois de dizer que para ser perfeita a pessoa deveria distribuir os seus bens e seguí-lo, nos conta que o homem a quem dissera isto ficou muito triste porque era muito rico. Mas nem por isso deixaria de entrar no céu, pelo menos é o que se entende nas entrelinhas, já que era um justo. Mas jamais seria um espírito luminoso como o de Dona Maria. Porque, na essência, Dona Maria deixara tudo para seguir o Cristo. Seguira o caminho de seu coração, como uma ave de arribação faz a sua longa viajem. Vivia em Cristo talvez sem o saber. Por isto eu disse antes que possuía um dom. Qual a razão? Mistério. Não creio que tivesse feito um esforço maior para isso. Era da sua natureza.

Dona Maria era uma pessoa muito importante porque ela não se dava importancia , no sentido do ego. Ela nada mais era que um pequeno pirilampo; mas como era luminoso o seu brilho numa noite escura! Emanava de seu ser uma felicidade de tal natureza que contagiava a todos que dela se aproximavam.Então as pessoas queriam estar a seu lado para roubar um pouco daquela riqueza, partilhar um pouco de sua felicidade. Saíam infelizes de casa a procura de um alívio, envoltas em seus problemas, seus desejos, suas ilusões e desilusões e voltavam com a verdadeira dimensão das coisas, sentindo-se leves e livres como um pássaro. O benefício era concedido apenas por se estar com ela. Não havia um gesto, uma palavra, que não fosse a da conversa geral pura e simples. Ela conversava com todos ao mesmo tempo como se a todos distribuísse as suas dádivas.O que havia em suas palavras? Sempre, apesar das risadas e das brincadeiras, uma autêntica alegria de viver, um pressuposto de fé, de esperança, de caridade. Principalmente de caridade.Intuía o que maltratava por dentro as pessoas. E encontrava um jeito de dizer que as compreendia.

Dona Maria tinha dois filhos, mas na sua postura todos os que a visitavam eram seus filhos. Os seus sentimentos se esparramavam em volta. Eram luminosos como o amanhecer. Eu, que sou um espírito errante e marcado por uma vida tumultuada e de combates, sempre a procurava usando um pretexto qualquer, como, por exemplo, levar um saco de arroz ou de açúcar, que ela recebia sorrindo e dizendo “as crianças vão gostar”; e eu, como uma esponja, me impregnava sem saber como, daquela alegria, me contagiava com a luz de seu sorrizo. Um belo dia ela me agradeceu “em nome do Senhor Jesus”. Confesso que, até por preconceito, fiquei preocupado: já vi muita maldade, muita incompreensão, muito preconceito, muita dissimulação, muita cupidez acontecerem “em nome do Senhor Jesus”. Mas em pouco tempo percebi que me minha preocupação fora indevida.

Cada um de nós usa tudo o que está ao nosso alcance para crescer ou decair, de acordo com certa realidade íntima, nessa luta constante pela integração do ser consigo mesmo, sem a qual não acontece a integração com Deus. Dona Maria, que em termos psíquicos ou espirituais – cada um chame como quiser conforme a sua crença ou falta de crença - já havia atingido o que antigamente se chamava de beatitude, cresceu mais ainda quando, em seu simples coração, abraçou o Senhor Jesus. Algumas pessoas pioram quando abraçam um credo, transformam-se em quase autômatos fanatizados e insuportáveis porque se sentem os únicos herdeiros e senhores da Verdade, mas outros melhoram, porque estão abertos para a Vida e a Vida é que flui como uma água cristalina dos seus corações. Este é um dentre os vários mistérios que nos rondam.

Poucos dias antes de partir, Dona Maria passava a sensação de que não era mais humana: parecia ter se transformado num anjo disfarçado pelo precário físico daquela velhinha. Quem dela se aproximava sentia-se um náufrago chegando numa praia. Um imenso mundo, cheio de vida, se descortinava diante de seus olhos... A experiência da salvação tornava-se inesquecível.

A comunidade onde vivia Dona Maria enterrou-a numa cova muito modesta. Mas continua recebendo a sua luz, sobrevivendo iluminada por aquela simples criatura de Deus, sem poder, no entanto- como eu -, escapar da sensação de ter perdido uma pessoa muito, muito importante.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 11/10/2008
Código do texto: T1223378
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