Voltando aos discos de vinil

Eu me lembrava bem da última vez que estivera na loja do Davi e era fácil perceber que não havia acontecido muita mudança. O mesmo cubículo fechado com todos aqueles discos de vinil enfileirados no velho balcão em colunas intermináveis que se estendiam por todo estabelecimento. O velho toca discos havia sido todo reformulado, mas nem por isso tinha aspecto de algo novo, como nada ali dentro. Curioso também era o público do Davi, uma boa parte dos que se animavam a entrar ali dentro se constituíam de jovens que nem tinham nascido quando aqueles discos freqüentavam as paradas. Mas também haviam os quarentões engravatados que vinham na hora do almoço. Como eu.

- Nossa há quanto tempo! Deve ter uns dez anos que não venho aqui.

Mas o Davi se limitava a me olhar como se nosso último encontro tivesse sido há apenas duas semanas atrás.

- Você me deve uma garrafa de vinho branco.

- O que?

- Já esqueceu de quando apostou comigo que o Nirvana ia durar tanto quando os Rolling Stones?

- Não.

Realmente não me lembrei da aposta, mas me lembrei da cara que o Davi fazia quando queria menosprezar alguém ou alguma coisa e era justamente essa cara que me fazia desafiá-lo por horas e horas de inúteis mas aguerridos debates. Ele dizia que Caetano não fez nada que presta depois de 1980 e eu retrucava dizendo que o disco de 1989 tinha sido bastante elogiado, ele dizia que o Cazuza era esparramado demais e eu contra-atacava dizendo que aquilo era atitude rock, por aí varávamos madrugadas adentro sempre esvaziando latinhas de cerveja. Agora eu estava prestes a começar uma dessas batalhas argumentando que o Nirvana não durou porque o vocalista se matou, mas logo deixei de lado aquela idéia e resolvi perguntar sobre a mulher e os filhos dele:

- Estão por aí aprontando das suas.

Isso era o máximo que eu consegui arrancar dele. Definitivamente o Davi com seu cabelo ainda longo, mas agora já grisalho, não era um amigo do qual você procura pra falar de família. Acontecia algo, uma coisa inexplicável toda vez que eu o via, era com uma volta a um tempo passado e como se nada tivesse acontecido depois. Não se tratava de nostalgia pura e simples mas, de um refugio, algo tão real quando as notas fiscais que teria que transcrever no escritório algumas horas depois. Algo necessário, que nos faz lembrar quem somos e sem o qual não conseguimos prosseguir. O Davi não me dava alternativa:

- O Nirvana não durou porque o vocalista se matou.

- Ele se matou porque sabia que a banda era ruim e não merecia aquele sucesso todo.

- Eles não eram ruins. Não confunda ruindade com simplicidade.

- Não faço esse tipo de confusão. Os Ramones eram simples e eu sempre gostei deles.

E assim a discussão seguiria por mais algumas horas. Depois nos despediríamos fazendo aquelas promessas de sempre que nunca são cumpridas sobre se encontrar mais vezes, programar um almoço e mais coisas assim. Mas o importante era sentir que por pelo menos algumas horas nós havíamos recriado um mundo que o tempo não conseguira destruir. Um mundo onde todos somos eternamente jovens, rebeldes e altivos como uma lança no ar. Um mundo que sempre existirá dentro de nós.