GRIPE

GRIPE

Gripe é coisa mais enjoada que acontece. Em geral, em tempo frio, Dá um mau humor, incômoda na cabeça, olhos, ombros, dores esparsas. Enfim um desconforto só. A testa franze tentando pensar alguma coisa parece que se fica sem inteligência. Fica-se um coitado mesmo.

Por mais paciência que se tenha a gente não agüenta gripe.

Parece que se fica doente do corpo todo.

Mas a gripe é um estado conseqüente. Não é ela que é. Se conseguir tirar fora o dengo, o infortúnio e o mau humor, liberar seu cérebro e sua lucidez quase a estaca zero, para analisar um pouco tal estado, o que se vê é que, antes de senti-la e a ela se render, alguma coisa desagradável aconteceu e já ficou meio distanciada a conexão,

Olha pra trás. Antes que a danada te possuísse e te derrubasse. Estou tentando compreender porque cheguei até ela.

Se eu melhorar um pouquinho vai lembrar que estava até feliz, há uns dias atrás.

Já começo lembrando que me arrumei, me agasalhei e tive o ânimo de nem tomar um taxi, Fui de metrô, vencendo escadas não rolantes e esperei sentada a chegada do próximo, pois que um trem acabara de passar. Desce uma mulher e para na minha frente me reconhecendo. Se tivesse ido direta eu não ateria visto. Mas parou e tirou os óculos: “não está me reconhecendo?”. Claro, mas não desejava. Fiquei séria e fria e olhei indiferente, Só respondi perguntas secamente e breves. Preferia ter guardado meu silencio.

Vi-a se afastar já com alguma alteração na alma. Ela é um cadinho ainda com restos de conteúdo vil dentro. Tal criatura foi a primeira ou segunda brecha no meu relacionamento bom de mãe e filha, já lá vão uns quinze anos. Nem quero lembrar e nem lembrei, prestei mais atenção ao pessoal do outro lado do metrô pra zona norte. Uma ocorrência tão passageira que se esquece logo, ou pensa que já esqueceu. E a chegada do trem logo te salva para uma nova situação e o movimento e ações se adiantam. Ocorreu-me aquela palavra que não se usa, sabe o que é um cadinho? Eu nunca soube ao certo, mas é uma vasilhinha em formato de funil que colhe um veneno ou um produto precioso ali por breve momento, usando-se para passar de uma vasilha para outra. Quando eu lia esta palavrinha, nunca olhava no dicionário o significado, pois que pela leitura eu já tinha entendido a função da peça. E ficam na memória algumas palavras que têm uma magia específica, acho que já tenho uma forma cor e sabor que a imaginação criou com alguma leitura e virou conquista literária mais ou menos isto. Quando li e adorei Robinson Crusoé, logo no começo, ele toma um navio antigo cheio de “cordoalhas” que para mim é uma das palavras mais lindas e mágicas da minha imaginação; não é só uma corda grossa, é o volume dela enrolada no convés do navio correndo ao vento de suas velas, e a água límpida, fria e verde do mar sendo cortada pela quilha e para a aventura em alto mar daquele jovem entusiasmado que vai ao encontro de sua ilha e de sua solidão. O caro leitor deve estar me entendendo, porque a leitura cria estas conquistas e construções imaginárias que a alma inventa. Tem umas coisas que são deliciosas de criar, a gente inventa. Curte até nem olhar no Aurélio. Sabe-se sem saber.

Tudo isto porque quero esquecer aquela figura do metrô que é espinho social.

Aqui sob meu apartamento mora um casal com uma criança. O marido tem a voz baixa, presa, acovardada. A mulher ao contrário tem a voz possante e até melodiosa, mas usada mais para o grito e palavrões. E um filho de uns quatro ou cinco anos em que ela despeja toda sua violência de insatisfação de viver. Um horror: bate no menino, esbraveja, há choros e gritos e barulhos. Não agride só a criança, a gente fica toda perturbada também, até tudo tenha um fim. O menininho estava tão sob tensão contida, que em dado momento ele chegou à varada e avisou: ”vou gritar”! E gritou.

Bem, ontem, ocorreu lá uma visita, e ficaram dialogando uns quatro em ponderações falsas, demorando a chegar ao ponto objeto daquele encontro. E a criança excitada falando e contando sem parar, aflito. De repente: o som de tapas pausadas e fortes: “Você não bate mais no meu neto” e Páá... “não bate mais no meu neto” e pá, pá, pá... seguidos de ais bem sofridos e, finalmente a moça chorou e prometeu não fazer mais aquilo. Os demais silenciaram e a criança também. Fez-se o silêncio e o fim.

Eu ouvindo os golpes dados na mãe, fui atingida pela avó dizendo palavras e ações, botando cada coisa em seu devido lugar. E salvando esta criança de mal maior enquanto todo o mal não foi feito. No silencio ecoou a voz daquela avó e sendo obedecida. Em mim esta mulher me indicou que eu devia ter defendido meus netos quando me foi imputada a ordem de esquecê-los. Há seis ou cinco anos que nada sei deles e perdi suas infâncias e nosso amor de netinhos e alegrias de avó.

Não sei leitor como te explicar isto porque é muito complicado e, em verdade não quero lembrar, mas são essas fraquezas nossas que dilaceram nossa alegria e a gente continua vivendo de outro modo, menos saudável.

A gente não se cuida como merece meio que se espera ser cuidada. E é nesta hora que o corpo fica com menos imunidade, porque a alma tomou o espaço para sofrer algo que ela evitara e ainda está a gritar pela sua justiça.

É nesta brecha que a gripe se instala na garganta que não gritou.

MLUIZA MARTINS