Uma noite em São João da Boa Vista
Meus amigos e eu passáramos dez dias frustrantes visitando algumas cidades de Minas Gerais. Dividimos o passeio das férias em blocos de maneira que, primeiramente, visitássemos Belo Horizonte e Sabará. Depois, Ouro Preto e Mariana. Por fim, São João Del Rei e Tiradentes.
Não sei bem por quais motivos mudamos nosso itinerário. Alguns dias em Poços de Caldas. Demoramo-nos menos de cinco horas na cidade graças aos meus companheiros que, bebendo desde o primeiro dia de viagem, conseguiram arrumar confusão com alguns jovens que ameaçaram arrebentá-los e também ao carro.
Preocupado com o automóvel, que não era meu, mas me dava alguma segurança de voltar para casa, mesmo cansado de dirigir desde São João Del Rei, lavei o rosto, tomei um café sem açúcar e me meti na rodovia.
Como não dirigisse por aquelas estradas, pela noite que começava, pelos amigos embriagados e pelo trânsito intenso, optei por um caminho e, sobe e desce de estradas, de entradas de cidade e de outras que desembocavam em acessos rurais, entrei em São João da Boa Vista.
Não agüentava mais dirigir. Os olhos ardiam, a cabeça doía, os ombros machucavam o resto do corpo, os braços mal se mantinham presos ao volante. Num posto de gasolina, o frentista me disse que os hotéis da cidade estavam praticamente lotados em decorrência de uma festa.
- Que maravilha!
Olhei o interior do carro. Os quatro, jogados uns sobre os outros e num sono profundo, nem sabiam do perigo de que escaparam nem se preocupavam com as mazelas presentes.
Rodei um pouco mais até avistar um restaurante, estacionar o carro com os vidros abertos, sentar-me à mesa mais perto da rua. Não lembro o que pedi. Enquanto esperava o jantar, folheando lentamente um jornal local, maldizia as viagens a Minas e aquela parada em São João da Boa Vista. Esse é um lugar para o qual nunca mais eu volto, falava para mim mesmo.
Uma garçonete de olhos enigmáticos trouxe-me a comida e, antes que eu terminasse o prato, ofereceu-me uma taça de chocolate caseiro. Provavelmente para desanuviar meu espírito, servira-me a guloseima sem saber que adorava chocolate tanto quanto a vida. Agradeci, comi, pedi a conta, mas antes que ela fosse ao balcão, perguntei o que tinha de bom para fazer na cidade.
-Eu não sei. Geralmente vou do trabalho para casa, de casa para escola, da escola para o trabalho e recomeço tudo.
Perguntei o que fazia para passar o tempo, além de trabalhar e de estudar.
- Leio poesia.
Olhei com desconfiança. Não tinha jeito de quem lesse poesias. Perguntei-lhe quais os poetas favoritos. Cecília Meireles e Augusto dos Anjos constavam permanentemente de sua cabeceira, contudo não esquecia de Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Pablo Neruda, Bocage, Casimiro de Abreu, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira...
Com o ímpeto de desmascará-la, comecei a recitar alguns fragmentos de um soneto de Bocage os quais ela complementou, falando pausadamente.
Aquele complemento constituiu um desafio. Imediatamente, como uma criança que se obriga a entrar em atrito com outra pelo prazer de se mostrar melhor, declamei fragmentos de Manuel Bandeira e de Fernando Pessoa, meus poetas prediletos.
Minha desenvoltura mnemônica ficou comprometida. Meu repertório esgotou-se rapidamente. Ainda tentei alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade, de Laurindo Rabelo e de Olavo Bilac, mas como minhas intervenções representassem pássaros em busca de abrigo e as complementações dela fizessem as vezes de gaviões estraçalhando minhas tentativas de superioridade, rendi-me aos encantos da linda poetisa, que ficou bela após suas declamações incessantes.
Quando penso num encontro ideal, delineio uma noite de versos com a linda garçonete que, de tanta beleza, fez-me esquecer dos dias enfadonhos de Minas e me levou à paixão pela culinária e pelos restaurantes de São João da Boa Vista, desde então, roteiro de minhas férias, de minhas folgas, de minhas fugas.
*Crônica premiada no 16º Concurso Literário da Academia de Letras de São João da Boa Vista (SP).
Publicado no Jornal de Assis (Assis – SP) de 9 de outubro de 2008.