Uma data errada?


          Não preciso sair da Pituba para ver a miséria na qual encontram-se mergulhados os meninos de rua de Salvador.  Aos magotes, eles deambulam pelo meu bairro, num vaivém sem-fim. E fazem o quê?  Pedem "uma prata", jogam bola, cheiram cola, trocam insultos, assaltam... A maioria dorme sob marquises e tem como cobertor os jornais de ontem. 
          Alguns já me conhecem! À tardinha, quando volto da padaria, lhes dou dois ou três pães, nunca dinheiro. 
          É saudável e proveitosa esta convivência pacífica com esses infelizes petizes. De uma coisa estou certo: dificilmente terei minha carteira de cédulas roubada por eles. 
          Dia desses, percebendo a presença de menores estranhos na área, procurei me precaver. De repente, de um deles ouvi o seguinte: " Não se assuste, meu tio, nós já conhecemos o senhor; o senhor é um coroa legal." Respirei aliviado e segui em frente. 
         E ele, carregando na cara o sofrimento e a desesperança, desapareceu no coração do crepúsculo.
          Podia aproveitar este dia 12 de outubro para sentar o cacete na sociedade e nos políticos que cuidam - mas cuidam mal -  do menino carente, que povoa nossas cidades. 
          E aí eu me pergunto: meu protesto adiantará? Valerá alguma coisa? Creio que muito pouco; ou simplesmente nada.  Ninguém sabe que eu existo; e, por isto, ninguém registrará que, indignado, estou aqui a defender essas crianças, numa simplória crônica. 
De escrevê-la, entretanto, não desistirei.
          Falemos sobre o Dia da criança. 
          Quero adiantar, que diante da crise que rola por aí, e que já invade meu bolso, começando a corroê-lo, cuidei cedo de comprar os presentes dos meus netos. Mesmo assim, por pouco não fiquei impedido de fazê-lo.
         Nesta onda de "o dólar vai subiiiir! - Já subiiiiu", até aquelas bonequinhas de pano, artezanais, ficaram mais caras. Catarina, Davi e Bernardo terão, pois, presentes modestos.
          Para os mais novos, claro, recordo como surgiu o Dia da criança. Lá pela década de 1920 um deputado federal deu a sugestão. Mas coube ao Presidente Arthur Bernardes oficializar a data, através do Decreto n. 4867, de 5 de novembro de 1924.
          Quero acreditar, que a idéia inicial foi a de homenagear a petizada, dizendo-lhe, entre outras coisas bonitas, que a boa criança de hoje será o bom cidadão de amanhã. 
          Embora, num dado momento e em algum lugar, ainda se pense assim, o que se observa é que a efeméride foi, a cada ano, ganhando contornos excessivamente comerciais. 
          O presente? Ah, o presentinho antes de mais nada. 
          Mas o Dia da criança se tornou um  evento comercial inarredável, a partir do momento em que a Estrela, com seus encantadores briquedos e a Jonhson & Jonhson, com seus inconfundíveis produtos infantis, passaram a dominar o pedaço, ali pelos idos de 1960.
          O certo é que o Dia da criança é hoje, praticamente, comemorado nas grandes lojas e nos shoppings. 
          Tenho refletido muito sobre se o Dia da criança está, de fato, sendo comemorado no dia certo. 
          Não seria melhor que o Dia da criança coincidisse com o dia de Natal? A opinião, meu arguto e lido leitor, não é minha. 
          Voltando às crônicas de Coelho Neto, constatei que o belo escritor maranhense, em 1923, já advogava a junção dos dois eventos. 
          A propósito, será que ainda há gente lendo Coelho Neto? Sei muito bem que encontrar seus livros nas nossas livrarias não é coisa fácil. 
          Visitando, ontem, a Saraiva,  encontrei Às Quintas, um livro que reúne mais de uma centena de suas crônicas, publicadas nos jornais cariocas entre janeiro de 1921 e dezembro de 1923.  É uma pequena mostra da sua exuberante e farta produção literária. 
           Dizem que Coelho Neto escrevia muito. Alvo de ligeiras críticas, ele chegou a ponderar: "Atacam-me porque produzo muito."
          Nos idos de 1904, foi advertido por Euclides da Cunha, que em carta lhe disse: "Andas escrevendo muito. Três artigos diários! Não re esgota esta dissipação da fantasia e esta caçada exaustiva dos assuntos?"
          Mas Coelho Neto tinha, na sua prodigiosa caneta, a garantia da sua sobrevivência.  Ganhava o pão de cada dia usando-a pra valer. Morreu no dia 28 de novembro de 1934 deixando, para os amantes da boa leitura, nada menos do que 120 obras.
          Pois é. Em defesa do seu ponto de vista, Neto oferece, como argumento fundamental, a tese de que ao se comemorar o Dia da criança longe do dia de Natal, a festa da criançada perde "o prestígio da presença do divino infante que ficará sozinho no seu presepe."
          Quanto aos pais, creio que até acolheriam, como oportuna, a sugestão de Coelho Neto, posto que, ao invés de dois presentes, dariam aos seus pimpolhos, apenas, um, cantando "Noite Feliz!"  O comécio que fosse às favas!
          Por outro lado, se devolveria aos pequeninos a satisfação e o privilégio de comemorarem sua data no mesmo dia do nascimento do Deus Menino.
          Também, desnecessário afirmar, que nesta história, o padroeiro das crianças, São Nicolau, se tornmaria um Papai Noel  autêntico; distante daquele velhinho entregador de presentes a uns poucos; passando longe das casas (casas?) dos meninos de rua, como os que circulam, dia e noite, aos magotes, pelo meu bairro...
          

      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/10/2008
Reeditado em 03/12/2019
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