Partilha dolorosa

Sou um chocólatra, e como qualquer outro, faço loucuras para obter mais um pedaço de chocolate. Não percebo, mas dizem que chego a ser um vexame. Às vezes, quando compramos caixas de bombons, um terço delas, como. As crianças são pequenas, não questionam a divisão, e a minha esposa, por incrível que pareça, não liga pra chocolate. Sei que estou errado, mas acostumei assim. A caixa fica lá, dando sopa, e minuto em minuto estou pegando mais um, nem me importo se engorda. Pego de enxurrada e meus filhos de conta-gotas.

Um dia desses, fomos ao mercado às compras e trouxemos, pra variar, uma caixa de bombom, deliciosos bombons. Após a refeição fomos come-los como sobremesa. Que surpresa amarga tive! Minha mulher, em tom de brincadeira, propôs que dividíssemos os bombons em quatro partes iguais. Não levei a sério, porém, ela insistia. Não podia acreditar que ela queria comer os chocolates também. Minha filha começou a distribuir.

– Um pra você, um pra você, um pra você e um pra mim.

Aquilo estava parecendo à divisão de uma herança. Tinha a impressão que a parte melhor, ou, os mais gostosos, iam para eles. Um a um, a parte que cabia a mim foi aumentando, mas parou logo, apenas seis eram meus, era pouco. Olhei para os outros punhados, a mesma quantidade havia. Todos estavam felizes, menos eu, o chocólatra inveterado.

Sentia dentro do meu peito uma dor, uma perda, uma sensação de fraqueza, não podia falar-lhes que queria mais, sempre comi muito. Por que eles queriam agora que tudo fosse repartido igualmente? Saí desolado. Ninguém percebeu, acho que não. Fiquei olhando para aquele punhadinho, acostumado com muito, não sabia se guardava, se comia todos de uma vez, se esperava os outros comerem, pra provar que sou forte. O fato é que aquele pouquinho estava lá, a minha frente. Lembrei-me do Ano da Graça do Senhor, tradição do Antigo Testamento, que perdura até hoje, pelo menos no nome. O Ano da Graça se repetia a cada cinqüenta anos, e consistia em redistribuir as riquezas acumuladas no último meio século.

Quem havia juntado muito durante este período, distribuía àqueles mais infortunados. Pelo amor a Deus, ao próximo ou pela força da lei, todos participavam/partilhavam.

Imagine você: se eu tive dificuldade em repartir o chocolate com meus próprios filhos, como alguém acostumado à ostentação, a riqueza, a fartura, ao poder, aos latifúndios poderá se desapegar desses bens repentinamente, de um dia para o outro? É muito difícil. O Ano da Graça do Senhor deve ser todos os anos. Recuperar, ou estabelecer uma paridade social para que todos tenham as mesmas condições de sobrevivência com direito à alimentação descente, à escola de qualidade, ao acesso rápido e fácil à saúde, à moradia e ao lazer, porque todos têm direito a ele também, não vivemos só de pão, mas de tudo o que o mundo moderno pode oferecer ao ser humano. Não deveria se criar progresso apenas para uns, embora se tem essa impressão.

Foi tão bonito ver todos os meus familiares com a mesma quantidade de bombons. O sorriso do meu filho brincando com o confete de chocolate, e a minha filha com os “Sonhos de Valsa” nas mãos, e até a minha esposa contente em ver a minha aceitação à mudança. E eu, que comi o que tinha, e que durou muito mais tempo que pensei, e acima de tudo saciado e em paz comigo mesmo.

Como seria melhor um mundo em que a partilha fosse o objetivo comum. Não só partilhar dinheiro, terras, tecnologias, bens materiais, mas também todo o amor que toda criatura oriunda de Deus tem. Construir um lugar habitável para que possamos morar livres de grades, muros, cercas eletrificadas e alarmes. Repartir, à primeira impressão, parece doloroso, porque vem aquele questionamento: “Mas trabalhei a vida inteira para juntar”. Mas, o que se levará para o outro lado da vida? Quem precisa de oito casas de vinte quartos cada uma para morar, sendo que há tantos se abrigando sob papelões? Qual é o sabor do salmão canadense ou do caviar, sabendo que o seu irmãozinho está comendo torta de barro e almôndegas de jornais velhos? Vale a pena se dar a todo esse desfrute conquistado à duras penas dos outros?

Wilian Aparecido da Cruz
Enviado por Wilian Aparecido da Cruz em 11/03/2006
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