PALAVRAS DESAFINADAS
- Estado civil, senhora?
- O que o senhor me perguntou?
- O seu estado civil, senhora.
- Hum! Para que o senhor quer saber.
- Preciso preencher a sua ficha.
Eu respondo entre os dentes:
- Viúva
- Viúva, senhora?
Mais ainda entre os dentes, eu respondo
- Viúva.
- O seu estado civil, senhora, é viúva?
- Meu filho, isso não é um estado, isto é um insulto.
- Viúva, então.
- É.
- Profissão, senhora!
- Para que você quer saber a minha profissão?
- Para acabar de preencher a sua ficha.
- Que diferença isso faz?
- Não sei senhora. Mas aqui pede para preencher. Então, qual é a sua profissão?
- Você escolhe. Alguma sugestão?
- Senhora, eu não posso escolher. A senhora tem uma profissão. Qual é?
Novamente, entre os dentes eu pronuncio:
- Aposentada
- Aposentada é a sua profissão, senhora.
- Isso não é profissão meu filho, isso é crucificação.
Este diálogo nunca aconteceu, mas as respostas sempre coçam a minha língua.
Tenho problemas com algumas palavras. Quem sabe, eu devesse procurar um psicólogo para saber o motivo desta minha dificuldade em lidar com elas, em algumas situações.
Talvez isso tenha começado lá pelos meus vinte e oito anos de idade, quando me vi obrigada a abrir o inventário dos bens deixados pelo meu falecido marido.
Nunca me esqueço do meu impacto ao ler no atestado de óbito: “deixa viúva, três filhos e um nascituro”
Fui correndo pedir socorro para o Aurélio Buarque de Holanda.
- O que é nascituro Professor Aurélio?
- Nascituro é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro e certo.
- Está bom, entendi.
Reli novamente o atestado, porque alguma coisa ali me incomodava.
Era ela. Aquela palavra antipática. Aquela palavra sem carisma. Aquela palavra “VIÚVA”.
Voltei correndo para pedir socorro ao Professor Aurélio,
- Viúva: mulher a quem morreu o marido e não voltou a casar-se. Pessoa que continua adepta ou admiradora fervorosa da personalidade morta ou no ostracismo.
- Professor, não existe nenhum sinônimo mais charmoso para essa palavra?
- Pode significar também: Ave passeriforme da família dos traupídeos. Melancia do miolo branco.
- Que horror! Vou preferir ser chamada de “melancia do miolo branco” a ter que conviver com essa palavra viúva - Pensei cá comigo.
O meu desespero aumentou, ainda mais, quando me lembrei de uma frase da bíblia (que eu não saberia localizar agora): “Amparai as viúvas, protegei os órfãos."
Naquele instante, o único amparo, de que eu necessitava, era uma ajuda para me livrar daquela palavra viúva e isso não havia jeito.
E não deu outra. Lembro-me, como se fosse hoje, da minha cara e dos meus sentimentos quando me perguntavam sobre o meu estado civil. Eu era nova, e minha aparência era de mais nova ainda, mesmo com os quatro filhos. A vermelhidão tomava conta do meu rosto, porque era um verdadeiro debate interno se eu diria ou não a verdade. Pelo ao menos, fiquei livre de comprar muitas coisas à prestação, só para não passar pela terrível resposta e ainda agüentar inúmeros olhares de pena, sobre mim.
O tempo passou e eu não me acostumei com ela, porém ela ganhou uma forte concorrente. A palavra “APOSENTADA”.
Atualmente, essa é a palavra mais incomoda, quando preencho algum formulário, até da internet. E a minha aposentadoria foi por tempo de serviço. Meio precoce, por ter sido aos quarenta e oito anos de idade. Eu diria compulsória e nisso não entrarei em detalhes.
É duro ouvir: “Já!”. E foi por tempo de serviço cumprido com dois a mais de lambuja.Por isso quando me perguntam a profissão eu agora respondo logo "Free" e deixo o resto por conta do argüidor.
Reconheço-lhes a diferença. Uma é perda e a outra é conquista.
Mas isso, não importa, não gosto das duas. Elas são muito mal-humoradas.