UMA HISTÓRIA DO MEU TEMPO DE MENINO

Quando eu era menino lá na cidade pequena sitiada de montanhas, ao Centro a Igreja, ao Sul o Ginásio, ao Oeste o Cemitério, ao Leste a minha casa e ao Norte a principal saída da cidade; montamos um grupo de teatro, como tantas outras iniciativas daquele tempo meio sem didática, fogo fátuo que não resistiu a mais que duas peças, contudo, o hábito de comemorar o sucesso das apresentações nos levava à casa de um ou de outro integrante do grupo logo após a apresentação.

Certa feita, os ilustres representantes da República, ainda encarnados nas vestimentas, o Jorge de Deodoro da Fonseca e eu de Marechal Floriano Peixoto, e mais alguns homens da época, fomos convidados a casa do Seu Joãozinho, um bancário (não lembro agora, mas acho que havia vindo do Rio de Janeiro) e pai de duas colegas da nossa turma; e lá pintou pela primeira vez um Conhaque de Alcatrão São João da Barra – e que barra! O Dalton, que era o filho do Juiz e também andava de namorico com uma das meninas do Seu Joãozinho, encarou a bebida preferida do “futuro sogro”, eu declinei por causa do gosto; até hoje sou um puritano, Conhaque para mim tem que ser de vinho e de preferência tem que ser Cognac.

Para não me alongar, naquele tempo já existia a preocupação com as drogas e o pai do Dalton, que era bem mais cancheiro que os nossos nativos, se preocupou em querer saber mais sobre a nossa comemoração pelo fato do Dalton ter “chamado-o-Ugo” lá pela madrugada, perturbando o sono e a vigia do ilustre magistrado e pai dos filhos que sabia ter sob sua guarda... Visinhos, lá pelas dez horas, fui a casa dele e encontrei o amigo em tal estado que não conseguia encarar a luz daquela manhã dominical, aliás, vocês já perceberam que as manhãs ensolaradas de domingo são sempre mais claras? A mãe dele, na cozinha, fez um sinal de que ele ainda estava no quarto. Entrei, bati e ele, num esforço sobre-humano, veio até a porta. Eu quis gaguejar alguma coisa ante o quadro que vi e ele estendeu a mão:

“Não fala que dói...” Eu quis dar mais um passo. “Não se mexa que dói...” Eu quis raciocinar. “Não pensa que dói...” Dizia, segurando a cabeça entre as mãos, apertando as têmporas e voltando ao poço escuro do quarto.

Dr. Loacir, que Deus o tenha, fleumático, calmo, de chinelo de pano por causa da gota, saindo do escritório, encarou-me com os olhos de Juiz e perguntou-me a queima-roupa ali bem no meio da sala de jantar: “Vocês beberam?” “Ai, Jesus! Meudeusdocéu! E agora? Pensei”.

Custava ter lhe dito que eu havia refugado aquela coisa no primeiro gole, discretamente para não melindrar o anfitrião, ou, na pior das hipóteses, dizer-lhe que eu não havia observado o filho dele sentado junto à sacada, com a filha do dono da casa entre as pernas e o maldito conhaque num copo de caipira ao seu lado direito? Mas, cagüetar um amigo isso nunca e “não, Doutor, nós não bebemos”. Santa ingenuidade, quando não era ele que ia almoçar na casa do Seu Joãozinho, era o próprio que vinha a casa dele; ao meio dia estaria tudo esclarecido e eu pego na mentira: que vergonha eu passei!

Ainda bem que era mentira de adolescente, não fosse mentira, seria inocente, fruto do despreparo ante a crueza da vida, quem sabe filha do medo, da insegurança ou das próprias destemperanças atávicas apontando-nos tendências futuras a ser retificadas no cadinho da existência.

O pior é quando mentimos na idade adulta e o fruto delas mostra-se nefasto e até mortal; o pior: impregnam-se em nossas sinapses, nos comandam e até se assenhoram da nossa vontade transmudando-nos para um intrincado jogo mental no qual perdemo-nos de nós mesmos, assimilando-nos como a mentira de nós até embotarmos a nossa consciência nas tintas daquilo que criamos para podermos fazer parte do jogo e, então, um dia a casa cai; a verdade estava na esquina ou atrás do muro que caiu e nós ficamos nus, então, que vergonha, os nossos pés são de barro, a nossa vida é um teatro fátuo no qual precisaremos urgentemente engendrar novas mentiras ou amargarmos o nosso erro, reconhecendo a falha atávica no nosso projeto humano, renovando-nos noutras bases que não a dos velhos vícios.

Que vergonha, Wall Stret! Os paladinos do Capitalismo, os pais, mães e filhos da livre iniciativa, pegos na mentira do ágio, pegos no hábito insano da usura trocada pelo trabalho, pegos na armadilha que a necessidade do ter engendra na necessidade do parecer ser alguém no mundo do ter; a alma do Capitalismo tem essa doença porque o Capitalismo ( assim como o Comunismo, a Democracia (vejam o caso explícito do Brasil) e outros ismos ) é fruto da engenhosidade da Alma humana – doente a Alma humana, me perguntarias, é, constato; eu esquadrinho a minha em busca dos meus enganos e assim descubro caminhos outros que me desviam de alguns ainda mais obscuros que os meus e se vejo os teus é porque não sou melhor que és: é porque há caminhos que já podemos vê-los de longe, às vezes doutro horizonte, às vezes de cima...

Que mentiras inventarão agora? Há cerca de um ano ou mais, proliferaram cursinhos de como o pequeno investidor aplicar (e ganhar mais) na Bolsa de Valores; maravilha, pensei: o povão da Caderneta de Poupança está sendo convidado a entrar no jogo das cobras-criadas... Até alguns pequenos empresários liquidaram as suas empresas e foram para o mais fácil, sem pessoas para comandar, sem Sindicatos para encher o saco e sem reclamatórias trabalhistas... É quase certo que inventarão novas mentiras para manter o jogo desvendado que se mostrou frágil, fraco e enganoso, porque serve muito mais à doença da Alma humana que a sua saúde. Eu vi os dois candidatos, um deles será o Presidente, de quatro diante da mentira que a ganância e a usura contaram para construírem impérios fátuos nos principais continentes, os vi pressionados pelo peso do horror que lhes mostraram os pais do dinheiro fácil, obrigando-os a carregá-los sobre os ombros para não terem que carregarem um império em escombros, com milhões de trabalhadores gritando de fome à janela do seu castelo dourado...

Mas, e se tiver chegado a hora de alguma luz de dignidade aparecer e revermos valores que considerem o trabalho produtivo e salutar como uma das bases de evolução para a humanidade? Quem viver verá. Eu não vejo ainda a menor mudança nos homens que chamam para si as rédeas que comandam as nações; às vezes, vejo as suas Almas de outros horizontes, tão distantes...

Chico Steffanello
Enviado por Chico Steffanello em 03/10/2008
Código do texto: T1209928
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