De trás pra frente
De trás pra frente
Eram 7 e 10 da noite quando o carro passou por mim. Carolina, da janela, gritou “eu te amo”. Antes eu havia dito. Dois minutos antes.
Já convivemos juntos, esporadicamente, sob um mesmo teto. Tenho saudades disso. Pensando bem, ninguém tem saudades de momentos infelizes.
Dez minutos antes estávamos comungando na paróquia da Cruz Torta. Felippe estava junto, mas saiu um minutinho para ir comer, depois voltou para comungar. Felippe come com a mesma freqüência que os peixes exercitam as guelras. Ana protestou em sussurros, que aquilo não tinha cabimento, porque ele não assistira toda a missa. Carolina indagou em que instante Jesus disse: “não, não vou te curar, porque hoje você não lavou as mãos”. A sabedoria dos 12 anos corta como o fio da espada. Ana escrevia apressadamente, os nomes que ela queria colocar, no papelzinho das intenções.
Foi uma confusão para estacionar o carro. O sujeito que “guarda” os carros é na verdade um dos mendigos do local, e não traja o jaleco de guardador de carros. Ninguém tinha um tostão. Os olhos dele estavam injetados. Os meus não deveriam estar diferentes. Ele me olhou com muita calma e disse: cada dia a vida nos conta uma história. Fiquei pensando sobre o valor daquela frase, cujo montante embute, inclusive, a precisão do momento em que foi desferida.
O trânsito estava às mil maravilhas de sempre na “capital de todos os paulistas”, por volta das 6 e 20. Ou 18 e 20, como queiram.
Felippe queria guiar. Ana, que estava guiando, disse que por causa dele, às vezes tem pressão alta.
O elevador demorou 4 existências para chegar ao nono andar. Saímos do elevador para o estacionamento numa espécie de transe quieto e coletivo. Lea empurrara Ana com força, na frente de testemunhas, que ainda estão se empenhando no intento de um boletim de ocorrência.
- Não sei se vocês irão poder ver ele de novo – disse ela, usando o mesmo método, há mais de 10 anos.
“Quando não se tem caráter, é necessário um método”.
Vimos o sol se por da janela do nono andar do hospital Albert Einstein. Só dava para ver o sol se por, no fim de um corredor. Felippe estava do meu lado, e seus olhos estavam vermelhos, da mesma cor da estrela que, se aqui se despede, ao mesmo tempo já saúda outros, noutro lado deste mundo. Que definitivamente é redondo.
Meu pai está no quarto 959 há mais tempo do que foi possível ocultar, mas só ficamos sabendo hoje.
Carol me abraçou no mesmo corredor, logo depois que saímos do quarto, pela primeira vez. Disse que não gosta de ver ninguém sofrer. Pensei apenas que um dos estranhos prazeres, que algumas pessoas expressam nesta vida, é o inverso das palavras da Carol. Mas não serei eu quem irá lhe contar isso.
Nunca vi meu pai com aquela expressão. Felippe abraçou e beijou o avô. Depois foi minha vez. Fizeram uma traqueotomia nele, então ele falava, falava, mas não saía som algum. Seus olhos estavam brandos, sua expressão estava branda, ele sorria com a leveza dos contemplados pelo simples saber de que sorrir vale à pena.
Meu tio Francisco estava lá. E um primo. Chamei-o de Luiz Carlos, porque ele tem um irmão com esse nome. Ele disse que isso é comum há meio século, visto serem muito parecidos. Não me lembrava dele, mas o inesquecível tomou conta desse encontro.
Francisco me abraçou e eu abracei ele. Perguntei o que meu pai tinha e, com ar sumido, respondeu: tudo.
Deixei o cartão do lado da cama, que deve ter tido o mesmo destino das outras correspondências.
Quando nos viu na porta, e de ante mão, Lea disse – ele não quer visitas. As boas intenções dela só Deus conhece. Mas ele se manifestou através da Ana, cujo poder da vontade nas cordas vocais eximiu quaisquer equívocos: você consegue dormir, separando um pai de um filho? Quem abriu finalmente a porta foi a mesma que tentou barrar, cujos olhos não tem brilho.
O sorriso do meu pai, ao ver o sangue dele em duas gerações, foi luz no meio de um túnel que não se sabe a extensão.
Complicado acharmos o quarto 959, emoções confundem muitas coisas, inclusive algarismos. Ana dizia que era para lá, Felippe alertava, expressando que se ela se acalmasse um pouquinho, veria a numeração inscrita nas portas.
A ida para o Albert Einstein foi tumultuada, Carol e Felippe discutem incessantemente sobre as importâncias existentes entre os 12 anos dela e os 18 dele. Também vivemos juntos sob o mesmo teto, dia a dia, desde o dia em que nasceram, até o dia em que parti. Vivemos juntos de vários jeitos, e fomos felizes.
Cheguei na casa deles às 4 e 15. Ana já estava na porta e disse: comprei um cartão, para você dar para o seu pai.
Uma hora antes eu estava no onibus a caminho de Santo Amaro, quando a mãe das crianças, irmã da Ana, me liga do seu local de trabalho e diz: acabei de saber que seu pai está no hospital, e não passa bem.
O que para uns é surpresa, que fere sentimentos não cicatrizados de antigos ferimentos, para outros é motivo obscuro para esconder o fato. Atitude que só revela tolice e fraqueza, pois a vida flui numa única direção, e a verdade surge, mais dia, menos dia.
Muita coisa alcançou esclarecimentos, neste dia.
Saí de casa às 10 manhã para compromissos rotineiros, com uma estranha inquietação, que só deu trégua ao cair da noite.
Ana tem bom gosto para cartões. Estava escrito assim:
“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”
Fernando Pessoa.