Dias de descanso
- Esse suco de maracujá vai ser bom, falava a tia, depositando o copo sobre a mesinha e fitando-o ternamente. Saiu discretamente, levando a bandeja e orando a Deus para que o sobrinho retomasse a vida.
Mário nada olhava. Perdia-se em resquícios da memória. Uma vida agitada em São Paulo. Ouvira das atrocidades contra as pessoas, mas não pensava que o acometeriam. Em praticamente dois meses. Primeiro, um assalto à porta da faculdade. Depois, roubo no semáforo. Em seguida, outro roubo em semáforo. Quarto incidente: caixa eletrônico de um banco. Por fim, um acidente. À saída do trabalho, ele e duas colegas abordadas. Os bandidos fugiram com eles no carro. Alguém chamou a polícia. Perseguição. Tiros. Um deles atingiu o pneu dianteiro. Duas capotagens. Suficientes para os bandidos escaparem, ele ficar preso entre as ferragens, uma das colegas gritar de dor pelos estilhaços fincados em sua pele e a outra desmaiar das dores produzidas pelo impacto.
- Vais passar uns dias na casa de tua tia, insistiu o pai assim que ele saiu do hospital. Em menos de quatro horas de viagem, chegas a Assis.
Na quinta-feira descansara, na sexta-feira saíra com os primos. Acordara cedo no sábado e, como os tios quisessem passar o domingo no sítio dos futuros sogros da filha, dormiriam cedo para saírem ainda às escuras. Sábado extenuante: Mário e os primos ajudaram na mudança de uma vizinha, reergueram o muro de uma entidade beneficente que congregava idosos doentes e descascaram algumas caixas de milho trazidas pela prima. Pamonha, canjica e quitutes diversos para o dia seguinte.
Antes das oito e meia, jogou-se na cama.
- Esse só acorda amanhã! Disse a tia, apagando as luzes.
- Ele precisava de um descanso. Vamos convidá-lo a vir aqui mais vezes. Quem sabe não muda para cá? Arrematou o esposo.
Dormiu de bruços, de bruços acordou-se por volta das duas e meia quando a garganta solicitou água. Calçou os chinelos, olhou para as roupas que usava, foi para a cozinha. No trajeto, ouviu algumas vozes e, em seguida, alguns pulos sobre os muros.
Sorriu de si mesmo. Uma paranóia, como sugeriu o irmão. Continuou até que algumas faces se colaram nos vidros da janela, tentando enxergar o interior. Ele se jogou embaixo do sofá, rastejou até uma cristaleira, ficou rente a ela, respirou fundo. As vozes sumiram. Aproximou-se de uma janela. Alguns homens, vestidos de preto e carregando uma bolsa comprida nas costas, dirigiram-se para os lados de alguns quartos e do escritório.
Respirou fundo, foi até a biblioteca, tirou uma espingarda de cano duplo, guardada numa prateleira falsa, carregou-a com as mãos tremendo, como também tremendo estavam os braços e as pernas e, como se escondido, caminhou para o fundo da casa.
Espiou por uma pequena janela que, de acordo com a tia, sem utilidade prática, mas de grande valor estético. Os pilantras conseguiram uma escada. Alguns pareciam bêbados. O que segurava a arma – sim, aquela longa capa preta continha uma arma – sorria, como se lhe desse prazer a desgraça que executaria.
Ainda trêmulo, subiu os degraus silenciosamente, tomando cuidado para não acordar os tios e os primos, encaminhou-se à alcova da prima e, pé ante pé, cruzou todo o quarto até o parapeito de onde, dando um pulo e um grito, começou a atirar freneticamente para todos os lados e a olhar os invasores como um louco.
No almoço de domingo, a família inteira ria das proezas de Mário.
- Da próxima vez, disse o esposo da tia, servindo-se um pouco mais de macarrão, ouvido por todos da mesa, eu te indico para vigilante do bairro. Vais ganhar o prêmio Vigilante do Mês!
Os risos ecoavam pelo ambiente, deixando Mário em maus lençóis e levando-o, sempre que possível, durante e depois do almoço, a pedir desculpas a Raul, namorado da prima que, numa tentativa romântica, pulando no jardim para se proteger dos tiros, quebrara o braço do violão e quase perdera o seu.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 25 de setembro de 2008.