Uma nova leitura de mundo - novas perspectivas do velho

Independência ou morte? Não, não... Leitura de mundo

Teria sido mais fácil acordar se não fosse pelo frio fora de época naquele sete de setembro. Os cobertores múltiplos confundiam-se ora com o próprio corpo, ora com a calefação artificial da qual não precisamos nos trópicos. Mesmo assim, aos toques insistentes de um rádio-relógio, abri as inertes retinas e vi que pela janela o céu se mostrava cinza.

Num sem passo apressado, pus roupas como quem veste coragem e, sem desjejum algum, saí rumo a estação do metrô. O dia prometia inigualáveis aventuras... Todos os pormenores deveriam fazer-me atento. As imagens quadráticas a vislumbrar de um simples vagão, as esquálidas estruturas de uma cidade imensa, embora frágil, os bairros cheios de sotaque, os transeuntes, o céu cinza, da cidade cinza. As cinzas estruturas concretas armadas de cada estação.

No Tatuapé encontrei a moçada: jovens barulhentos à espera do pseudo-guia (outrora mestre) que os levaria pelos quatro cantos do poligonal centro de São Paulo - geométrico, arquitetônico, multifacetado centro. Havia mochilas, sacolas, violão, lanches secretos, sorrisos maravilhosos e muita, mas muita felicidade no ar. Cheguei a pensar que o céu muda de cor com tanto alto astral. Embarcamos.

A cada estação uma novidade, no alto de minha enorme experiência como guia turístico de grandes cidades (mentira, mentira), ia passo a passo mostrando curiosidades que margeavam a linha do metropolitano: a catedral da Congregação Cristã, a antiga fábrica dos Moinhos Santista, o centro de migração nordestina, o vale do Tamanduateí, o treme-treme. Descemos na Sé e mergulhamos nos subterrâneos sem paisagem de São Paulo.

Em poucos instantes, graças à competência veloz dos trens da linha azul, atingimos nosso primeiro destino: a Luz - um universo de gentes de todos os lados, arquiteturas britânicas, labirintos levando a todos os cantos. Um apanhado de pessoas sem história, de estórias sem pessoas, de migrantes, caipiras, suburbanos, estudantes, marafonas, meretrizes, traficantes, hotéis de quinta, pocilgas, pardieiros e pásmem, um apanhado de vida. Vida viva, vida concreta, vida materialistamente histórica. Uma vida de contrastes onde o belo e o feio se fundiam em pés direitos de construções à míngua misturadas com edificações restauradas... via-se ali os efeitos da roda da fortuna e da destruição.

Seguimos, sob um sol tímido, mas já aparente, rumo à nossa delícia gastronômica: o Mercadão Municipal da Cantareira. Segunda parada. No caminho entre as ruas Florêncio de Abreu, Paula Souza, 25 de março e Barão de Duprat, discussões ideológicas sobre política, economia, partidarismos confundiam-se com as explicações que dava sobre a origem dos comércios, a escolha dos imigrantes, etc.. O menino Harry insistia em defender Maluf, Marcela defendia Marta, e todos defendiam a vontade de comer o belíssimo e famoso lanche de mortadela (na verdade, eu acho esse lanche um abuso, um absurdo, uma ode ao desperdício, mas...). Música, rock e cultura também eram assuntos discutidos à exaustão. Hummm, isso dava uma fome!

Lá no mercado, nos separamos e eu marquei um horário neutro para nos encontrarmos - às onze - mas antes disso já estávamos juntos de novo. Não sei, parecia uma simbiose, queríamos estar juntos todo tempo, comentando sobre frutas, vitrais, preços exorbitantes, preços módicos, sabores exóticos e papos de aranha. Queríamos fazer rock'n'roll, queríamos cantar, tocar e aplaudir, queríamos sorrir, quem sabe chorar. Curiosidades e emoções andavam lado a lado assim como nós: mais de vinte jovens em busca do mundo, no centro de um mundo, no centro do centro, indo ao centro de si.

Sentamos do lado interno do velho edifício e, mesmo sem pedirmos autorização, sacamos a viola do saco e começamos algo longe de ser chamado de "jam". Acordes equivocados, vozes desafinadas, palmas sem ritmo, valia tudo. Gordinho foi de Skank e eu de Cazuza, arriscamos um uníssono em Cássia, passamos pelos Paralamas e claro, desembocamos no lugar comum, quando alguém por brincadeira gritou:

- Toca Raul !!!

Após o breve sarau, continuamos nossa empreitada. Fomos à Boa Vista, ao Convento de São Bento, ao Martinelli. No Martinelli, Maria, que já esteve nos EUA percebeu se tratar de uma réplica do edifício Dakota, aquele, em frente ao Central Park, onde um tal de Chapmann alvejou fatalmente John Lennon. Seguimos pela Quinze, conhecemos as Bolsas, prédios nobres, Times Square paulistana. De repente, acenamos uma vista inusitada: um homem e seu violão, dedilhando canções ao esmo, para pássaros, transeuntes apressados e claro, para nós. Ouvimos atentos seus acordes e depois, via de regra, demos a ele algumas moedas. Aline, Jay e Kay com seus respectivos namorados, ficaram encantadas. Rumamos para a próxima parada: Pátio do Colégio.

Assim que avistamos o primeiro marco zero da São Paulo de Piratininga, vimos que a visita renderia mais do que o esperado. Um grupo de “performers” ensaiava uma coreografia oriental em pleno pátio, sobre as pedras do calçadão. Arthur se deslumbrou com o que viu e , eu, sagaz, percebi seu deslumbre. Chamei-o para entrevistar a diretora do espetáculo. Foi bárbaro.

Dentro da igreja, aquela, fundada por Anchieta, comecei a explanar sobre os desvarios da Companhia de Jesus, que, ao lado de Francisco Pizzarro, ajudou a dizimar as tribos ameríndias viventes por aqui no século XVI. Fui chamado à atenção. Uma historiadora jesuíta me coibiu, censurou. Disse-nos que aquilo tudo que eu professava era “mentira”. Tudo bem, num país democrático as pessoas têm, inclusive, o direito de censurar (contraditório, não?). Aquilo nos gerou uma sensação de desconforto e então seguimos para a Praça da Sé. Dos muitos atrativos do coração paulistano, escolhemos o Caixa Cultural, que possuia uma mostra sobre Jorge Amado, um de meus ídolos.

A mostra era fantástica. Havia esteiras de palha no chão cujo objetivo era, de fato, fazer-nos descansar. Assim o fizemos, quando, do nada, surgiu uma guia, historiadora (porém bem diferente da anterior, lá do Pátio. Ela nos deu uma verdadeira aula sobre Jorge e suas baianidades. Falou-nos das obras em exposição e claro, sobre a biografia do autor mais molemolente de nossa literatura.

Alguns não gostaram, outros, demasiadamente cansados, demonstravam que o dia já se findava. Decidimos então encurtar o passeio e fomos rumo à linha de chegada: Praça da República. No caminho, mostrei à turma a Rua Direita, Praça do Patriarca, Líbero Badaró, Prefeitura e paramos por alguns instantes sobre o britânico Viaduto do Chá. Vislumbramos uma São Paulo que não conhecíamos: verde, singela, tranqüila e bela. Mães de Santo, ciganas, meninos de rua e mendigos já não mais enfeiavam o espectro caótico, porém cosmopolita e desenvolvido da nossa São Paulo, pelo contrário, tornavam-se espectros necessários para a compreensão de um mundo infelizmente desigual, mas, que mesmo assim, abrigava a todos.

Na frente do Municipal, a galera do teatro não se fez de rogada. Emocionaram-se tamanha era a beleza do prédio, sua arquitetura, sua história, suas criptas, seus “Dons Giovannis”, “Toscas”, “Madames Butterfly”, “Clara Crocodilos” e, claro, seus Mários, Oswalds, Tarsilas e Anitas todos vivos, de braços abertos nos esperando em plena escadaria. Era 2008, mas poderia ser um dia de fevereiro de 1922.

Na Barão de Itapetininga, ainda nas cercanias do teatro, um “homem-estátua” cativou nossa turma. Mônica resolveu dar-lhe um trocado e quase se assustou quando ele se mexeu, imprimindo na brincadeira, um ar para lá de sensível. Ela ganhou um brinde, e saiu feliz da vida. Logo á frente, a turma do Racional, um movimento charlatão que mescla gnose com espiritismo chamou muito a atenção da maioria. Precisei intervir, pedindo para que não dessem atenção.

Enfim, nossa trilha urbana de leitura sem livros e sem letras estava entrando no epílogo. Faltava forrar os estômagos, quando me deparei com uma lanchonete bem típica do centro de São Paulo em plena República. Entrei e indaguei ao balconista se, caso comprássemos refrigerantes, poderíamos comer nossos lanches até então secretos. Ele não hesitou, todavia, cobrou cinco reais por cada coca-cola.

Fiz com que todos entrassem e se acomodassem em cadeiras quase desconfortáveis. Dominamos o espaço. Arthur, Vítor e eu, em conjunto de Ísis e sua fiel irmã-escudeira, arrumamos as mesas e começamos um abrir desconexo de caixas, potes, cumbucas e sacola. Brotaram do nada bolos de banana, de baunilha, de côco, quibes de sabores diferentes, pães de queijo, bisnaguinhas com frios e o mais aguardado dos lanches: o sanduíche vegetariano de Arthur. Marcela organizou a bagunça e começamos a nos servir. Comemos quase tudo, tamanha era a fome. O sanduíche de tofu surpreendeu e extrapolou as expectativas; cinco cocas foram evaporadas e um gostinho de quero mais começou a se instalar no ambiente. Oramos, brindamos, comemoramos e já sentíamos saudade de um dia que sequer havia acabado.

Para finalizar o processo de interação com um mundo tão velho, embora novo, recolhemos as sobras (não pejorativo) dos alimentos, organizamos em sacolas e procuramos a quem distribuir: foi fácil, pois na “Panamérica África utópica, mais possível novo quilombo de Zumbi”, havia quem tinha fome e que sem saber que o estava fazendo, permitia que novos estudantes passeassem na sua garôa e que pudessem, de fato, curtir tudo isso, numa boa.

Rodrigo Augusto Fiedler
Enviado por Rodrigo Augusto Fiedler em 26/09/2008
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