Memórias Infundadas de Minha Saudade Ficta

Hoje passei por você, quando atravessava a rua – eu, saindo da praia; você, chegando. Olhou-me, mas pareceu nem me ver, exalando uma indiferença incômoda ao meu olhar. Gostaria de me sentir assim também - tão indiferente a sua presença -, mas não consegui. Você usava uma bermuda clara – talvez a mesma que eu teria escolhido quando você me perguntasse o que deveria vestir naquela manhã, pouco se importando em realmente vestir-se. Antes da praia teríamos feito amor, numa lascívia insana que costumaria te tomar nos instantes mais pacatos, menos previsíveis; e eu, exposta aos teus desejos mais candentes, sentir-me-ia completa por todos os poros do meu e do teu pecado. Pecaríamos juntos, e nos perdoaríamos para então de novo pecar.

Passei por você, enquanto uma eternidade de memórias ilusivas se prostituíam em mim. Você me viu, mas não me olhou. Tua atenção era arisca à minha tensão, e eu ainda tencionava tanto por nós dois. Te vi chegando em casa, depois de perder o emprego porque achou uma injustiça que decidiu manifestar - mesmo que isso implicasse exatamente no resultado que teria certamente ocorrido. Era essa tua audácia o que me facilmente seduziria por todas as manhãs; eu continuaria a ser obcecada pela tua falta de medo, por toda a petulância que haverias de ter em tudo que a vida quisesse te afrontar. Teu estímulo nunca seria menor que o temor de todo risco, já que tua preferência era mesmo arriscar. Como no passeio de asa delta, quando nenhum escrúpulo terias em desrespeitar teu próprio medo de alturas. Era a adrenalina o que haveria de ser teu vício puro e cativante.

Enquanto mal me cabia uma cólera nostálgica e surrealista, eu passei por você – você que nem me viu, sequer olhou a miséria que doía a saudade de minha própria ficção. Eu sentia falta absorta até da tua respiração: ofegante quando de uma ansiedade vulgar, branda quando da supressão dos sentidos sonolentos. Seria eu a maior cúmplice de teus delitos insensatos; leal à tua insensatez; escrava de tua libido desatinada... eu seria tua, toda. E te odiei por tua teimosia cruel em não deixar-me sequer ser o que quisesses de mim.

Hoje eu passei por você, mas você não me olhou, não me viu. Eu, embora num apressado e passageiro instante, pude sentir o regozijo tumultuado que teria sido nós, mas você continuou sem sequer me olhar pela primeira vez.

Ie
Enviado por Ie em 26/09/2008
Reeditado em 10/02/2009
Código do texto: T1197162
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