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MEU NOME É GERALDO!

 

 

Fim de tarde. Caminhada a passos rápidos, para não cessar a atividade aeróbica, nem interromper o meu ritmo de quase corrida – nenhuma intenção que não seja a de aliviar os males que nos afligem, no dia a dia e nos precipitam ao estado de preguiça física e mental e que, fatalmente, nos levam à depressão.  Faz muito bem  e por isso, não abro mão dessa prática diária.

 

Logo na primeira esquina, passei por um homem, porte franzino, vestindo bermudas e camiseta surradas, um pouco amareladas pelo tempo, descalço, cigarrinho no canto da boca, observando os passantes, folheando, com os olhos, os jornais expostos no Jornaleiro ao lado.

 

Apesar de meu ritmo apressado, chamou-me a atenção, pois lhe faltava a perna direita, amputada á altura do joelho e andava – ou melhor, pulava – em uma perna só, apoiando-se em uma bengala pequena, inadequada, para a sua estatura.

 

Andei por mais ou menos duas horas e decidi fazer o mesmo caminho, na volta. Não sei bem porque...  Retornei pelas imediações da Santa Casa de Misericórdia.


Não é, propriamente o local mais adequado para se exercitar, fazer caminhadas ao ar livre - habitualmente ando no Parque Buenos Aires - mas naquele dia, um  Sábado, início de noite,  decidi mudar meu trajeto. E, lá estava ele, na mesma esquina, à porta de uma lanchonete, cigarrinho no canto da boca – seria o mesmo? – como se estivesse pensando, talvez, em como chegar em casa, ( e se tinha uma para onde voltar), pulando em uma perna só.

 

A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, atende milhares de pessoas por dia, de todos os cantos de Brasil – e do mundo – que vêm em busca de atendimento médico de qualidade, em se tratando de uma das mais conceituadas Faculdades de Medicina do País, ali chegam, dezenas de ambulâncias, trazendo feridos de todos os pontos da cidade. E, quando o paciente obtém alta do tratamento a que estava sendo submetido, fica por ali, dorme nas calçadas, pois, na maioria das vezes, não tem para onde voltar. Não é raro encontrarmos pessoas pedindo ajuda para pagar a passagem de volta a suas casas, em todo canto do País.

 

Talvez que aquele rapaz estivesse nessa mesma situação, por isso ainda ali permanecia, parado, com o cigarrinho no canto da boca – quem sabe, apagado – tentando descobrir um meio de retornar ao seu convívio. Quem poderia saber?

 

Parei, entrei no bar, pedi uma água, para restaurar minhas energias, aproximei-me dele ali, parado, estático, sem dizer nada e sem nada pedir a ninguém!

 

- Boa noite, amigo! Ele assustou-se. Acho que não esperava um cumprimento.

 

– Como é o seu nome? – perguntei-lhe. Virou-se e vi que ele era um homem bonito. Apenas maltratado, pelas dificuldades da vida. omo tantos!
– Boa noite, dona. Meu nome é Geraldo!

 

- Você aceita um cafezinho, Geraldo? Ele sorriu! – Nossa Sinhora, moça! Pareci qui a sinhora adivinhô, tou seco pra tomá um café!

 

 – Então, entre, meu amigo, que eu lhe pago um, quentinho. Como você prefere, com leite? – Não, sinhora, pretim, que eu gosto assim mesmo, pretim.

 

 -Você quer comer algo? - Não sinhora, brigado. Num tou com fome não... E ficou ali, apreciando o café, gole por gole, bem devagar, como se fosse a primeira (ou última) refeição de sua vida! Seu semblante era alegre, tranquilo, de pessoa do Bem.

 

Faltavam-lhe alguns dentes e deveria ter mais ou menos 30 anos. Tomou todo o café que lhe ofereci, como se estivesse sorvendo uma taça de Champanhe da melhor qualidade. Agradeceu-me, com um sorriso, pediu fogo ao atendente, da lanchonete, acendeu o cigarro que estava solto no bolso da camisa e preparava-se para ir embora, pulando num pé só, quando o chamei de volta.

 

-Geraldo, vejo que você está andando com muita dificuldade, pulando, somente com uma bengala, um pouco pequena para a sua estatura, o que houve?

 

- É, sim sinhora. Perdi a perna num acidente, fui atropelado há trêis méis atráis. Fui muito bem atendido aqui na Santa Casa e agora tive alta. Me mandaram voltar pra pegá umas muleta que eles dão pra gente que num tem condição de comprá, mais já vim umas trêis vêiz aqui e eles tão sem as muleta,  purquê muita gente que pega, num vem devolvê e os outros que pricisa, ficam sem... O méis que vem eu volto, quem sabe já tem alguma e eu pego, pelo menos uma.

 

Notei que Geraldo falava isso apenas porque eu perguntei, mas sem pieguice, sem revolta, estava apenas relatando fatos reais. Despediu-se novamente de mim, tornou a agradecer pelo café, quando me lembrei, envergonhada, arrasada mesmo.

 

Meu Deus! Eu tenho as muletas em casa, as quais foram emprestadas pelo Hospital, quando meu marido caiu, fraturando o fêmur, há dois anos atrás, sendo levado, de Ambulância, às pressas para lá - é o Hospital central, que atende a todas as emergências - e elas continuavam em um canto da casa, lá no quartinho da bagunça, por dois longos anos... eu também, como tantos, não as havia devolvido!

 

Esquecimento? Falta de priorizar algo tão importante para tanta gente? Ou, então, prefiro pensar que elas ficaram ali, esperando por ele! Mesmo assim, morri de vergonha. Com um enorme sentimento de culpa, corri atrás dele, feito louca!

 

-Geraldo, tenho um par de muletas em casa, que deveria ter devolvido ao Hospital, mas sou uma das pessoas que não fizeram isso. Quer que as traga para você? Sua fisionomia era de quem não acreditava no que estava ouvindo... Sorriu, feliz!

 

- Mas, Deus do céu, quero sim, foi Deus quem colocou a senhora no meu caminho, moça!

 

- Então, espere por mim aqui, não vá me sair deste lugar, que vou em casa buscá-las para você, moro aqui mesmo, no fim dessa rua e não me demoro.

 

- A senhora quer que eu vou indo atráis, pra não ficá muito longe pra voltá depois?

 

- Não será preciso, é bem perto, vou e volto num minuto, trazendo as muletas.

 

E lá fui eu, correndo, ainda mais do que em minha caminhada, não mais tão envergonhada por não ter devolvido ao Hospital, as muletas, quando perderam a sua utilidade e poderiam ter servido a outros tantos! Entrei em casa, ansiosa, peguei o par de muletas, limpei-as, pois já estavam bem empoeiradas, pelos dois anos de abandono e desuso, em um canto do quartinho. Que vergonha eu senti!!! Voltei quase correndo, com elas nas mãos, e vi que Geraldo havia acompanhado meus passos, mesmo rápidos, e ele, pulando em uma perna só, até em casa.

 

Estava me esperando na esquina. Me disculpe, sinhora, mais eu resolvi vim atráis, pra sinhora não precisá andá muito! Paramos na esquina, ajustamos as muletas para sua estatura, pois estavam muito altas para ele e, quando estavam perfeitamente ajustadas ao seu tamanho, ele olhou-me nos olhos e perguntou:

 

-Me disculpe eu perguntá, não me leva a mal, mas como a sinhora se chama?

 

- Meu nome é Emília, Geraldo, e não há mal nenhum em querer saber...

 

-Dona Imilia, posso pegá na sua mão prá agradecê? A sinhora é um Anjo!

 

 - Claro que sim, Geraldo, mas não sou Anjo, coisa nenhuma, esqueça isso! Sou apenas mais uma que se esqueceu de devolver as muletas!

 

- E, estendendo a mão, já com as muletas embaixo dos braços, segurou a minha com firmeza, fitou-me os olhos, agradecido. O olhar, tão profundamente sincero!

 

-Brigado, dona Imilia! É como eu falei... Deus pôis a sinhora hoje no meu caminho, pra me ajudá! Que Ele proteja sempre a sinhora, que nunca deixa lhe faltá nada! E proteja seu marido também!

 

Ficou ali, segurando minha mão, com as duas dele – cigarrinho no canto da boca –olhos brilhando de emoção e felicidade, depois, seguiu seu caminho, não mais pulando, mas andando! Andando a passos largos, como se também estivesse fazendo uma caminhada benéfica a sua saúde!

 

O que senti em meu coração, em meu íntimo, até agora não defini muito bem. Foi um misto de satisfação, de gratidão por ele ter surgido em meu caminho, justamente depois de alguns aborrecimentos havidos, que, nessa hora, percebi o quanto aqueles ocorridos, dias antes, não tinham a menor importância! Talvez por excesso de orgulho, baixa estima, falta de humildade em reconhecer o quanto somos egoístas, dando uma dimensão muito maior a fatos corriqueiros em nossas vidas, providas de tudo, quando o Geraldo não tinha nem um par de muletas para que pudesse andar, e não pular! E, quantos “Geraldos” existem, que insistimos em ignorar...

 

Mas... sabem o que mais me emocionou? Não foi o fato de ter feito um ato de caridade, humanidade, e sei lá o quê mais – que isso deveria ser uma prática diária em nossas vidas privilegiadas - mas a  sorte que tive de encontrar alguém que necessitava, naquele momento, justamente de algo que eu possuía em casa, que nem me pertencia e estava inativo, jogado em um cantinho do quarto de despejo.  

 

Calou fundo em mim, constatar que, quando uma força maior determina, as coisas acontecem e se encaixam, perfeitamente, como o côncavo e o convexo! 
Como a água e a sede. A fome e a comida!

Geraldo agradeceu-me, com palavras, gestos e, principalmente com o olhar. Um olhar profundamente agradecido e esperançoso!

 

Mas, na verdade, fui eu quem fiquei grata a Deus, por haver colocado essa pessoa em meu caminho! Alguém que não fazia de seu problema, uma tragédia. E que eu, dias atrás, havia feito uma tempestade,  em nada!

 

Estava disposto a voltar à Santa Casa, quantas vezes fosse necessário, para obter as muletas, que o ajudariam a se locomover com menos dificuldade. Impressionou-me aquele semblante sempre alegre do Geraldo! Seu sorriso, faltando dentes, pulando como um Saci, saindo dali, com as muletas ajustadas embaixo dos braços, ainda segurando a bengala curta em uma das mãos que, provavelmente, passaria para alguém que estivesse necessitando tanto quanto ele, naquele momento!

A solidariedade não tem fronteiras, só coração! E coração disposto a doar o que tem a quem necessita.
Eu percebi que ele queria dividir com alguém aquele gesto que havia recebido de minhas mãos.

 

O sorriso estampado no rosto de Geraldo, era de alguém que havia recebido uma Ferrari conversível, tivesse acelerado e saído, voando a 200 km por hora! Como se o mundo tivesse, enfim, lhe aberto as portas!

 

Porém, naquele momento, a única coisa de que ele necessitava, era um par de muletas, para poder andar, sem pular em uma perna só!

Elas eram a sua Ferrari conversível!!!

 

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Há algum tempo atrás, quando ainda era Assinante do Usina de Letras, publiquei esta Crônica lá e, desde então, estou prometendo ao meu amigo, Pedrinho Goltara, editá-la aqui, no Recanto das Letras. 
E isso estava me cheirando a promessa de Político 
– que nunca é cumprida. Pára, ó!

Taí, amigo! Você vai perceber que dei uma repaginada nela, pois a gente evolui e percebe que cometeu alguns erros que devem ser restaurados. Foi o que fiz, sem mudar o conteúdo, nem a história – VERDADEIRA!

Ofereço-a a você, por todos esses anos de amizade e leituras recíprocas. Obrigada por tudo. 
( Milla)