CONTAR ESTRELAS

Contar estrelas

Dou alguns passos em direção à porta da rua. Lá fora, é tão íntimo quanto aqui dentro. O quintal sombrio, as estrelas pontilhando o negrume do céu sem lua. Pode haver estrelas, quando a lua se esconde? Percorro as vielas estreitas, esgueirando-me entre os canteiros mal desenhados, com a cabeça para o alto. Sinto uma dor no pescoço, mas insisto na manobra radical para minha idade. É bom ficar assim, feito criança, olhando o céu, apenas o vazio infinito, perdido num mundo que não é mais meu. Ou de ninguém. Mas quero viver este momento evasivo, no qual a solidão se esvai como balão estourado. Fugidio, brigando com arvores, destelhando nuvens. Acendo velas para os mortos ou para os vivos. Não sei. Agora que a energia faltou, bom viver na escuridão quase total da noite. Não fossem as estrelas...Quisera não sair nunca mais do meu quintal, nem sentir o cheiro agro-doce das velas. Parecem incenso vagabundo da dona da Confeitaria. Que tem a ver incenso com confeitaria, com paes e doces? Mas costuma extrapolar seus desmandos, sua pose de rainha, sentada na caixa, esperando os míseros cobres que soltamos no balcão. Cobres? Falei cobres? Estou velho realmente. Mas não caquético, não admito. Sou lúcido, sou forte, ainda sonho. Sonho em ver estrelas mais de perto, com uma luneta colorida. Quisera ver a vida, na estreiteza das relações, e quem sabe, descrever o que me ficou às escuras, oculto, escondido na miopia de meus sentimentos ou percepções. Nunca tive a agudeza dos espertos, a argúcia dos empreendedores. O máximo que arregimento é o cultivo de minhas plantas. Organizo-as, converso com elas, como todo velho, fico a olhar o dia e não o deixo passar sem fazer alguma coisa que me enleve, me dê alegria, me mostre algo mais do que meu fraco coração descortina. Quero não ver apenas, mas vivenciar as urdiduras, as tramas triviais, o velho que desandou esquina abaixo, descendo ladeira, desequilibrado na cadeira de rodas, o menino que regurgitou o sorvete na cara da mãe, com dor de barriga e ansiedade de comer o que a vida lhe oferece, a moça que pintou o piso com o lápis de sobrancelha, beijando o chão que o namorado pisou, o rapaz que deu duas piruetas no ar e transformou a moto numa sanfona, o homem maduro que atravessou o sinal, destemperado, gritando aos brados, faminto de raiva, porque o companheiro de trajetória cortou-lhe o caminho. Mas não quero tragédias, não. Que ninguém morra ou se machuque. Só que permitam gargalhadas. Que possa rir, sem chorar e que eles aprendam com os erros, se não o fizerem com a maturidade. Também quero ver bandeiras balançando, gente se enfileirando num mesmo objetivo, desde que não sejam pagos para isso, flores vicejando, pássaros se abrindo em vôos em v, andorinhas visitando as tribos, adolescentes inventando amor em cio de primavera. Quero viver. Mas agora, quero só voltar a cabeça pra cima, passear pelo meu jardim disforme, olhar para o céu escuro e contar estrelas. Com sorte, pego até uma verruga.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 25/09/2008
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