Militâncias

MILITÂNCIAS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 24.09.2008)

Estava lá, num canto do jornal: vendo militâncias. Aguerridas e entusiasmadas como nos velhos tempos. Trabalho profissional. Tão profissional que parece espontâneo. Temos opções também para caras-pintadas. Pintadas com as cores da sua preferência. Do seu time de futebol, da sua igreja, do seu partido político. Inclusive com as cores do arco-íris. Ou todos em preto. Exclusivamente em preto, nestes tempos do politicamente correto. Pouco importando, claro, as convicções mais íntimas e sinceras de cada qual de nós. O que vale é a aparência. O bom-mocismo. O o-que-é-que-os-outros-vão-pensar. E vão dizer. O como-é-que-eu-fico-nessa. O que vale é o figurino seguido à risca. Pouco importando quem o tenha riscado. E com quais intenções e objetivos. Ou a quem sirva o figurino. Segui-lo no escuro, posto que alguém, em algum lugar, sabe o que está fazendo com isso tudo. Ao menos, supõe-se que saiba. Mas é claro que sabe. Ninguém se mete nessa, de orquestrar coisas de forma tão globalizada, se não souber para onde aponta seu nariz. De onde sopra o vento. Ninguém globaliza às cegas. Perdão, mas isto ninguém faz. Às cegas anda quem segue. Só vai às cegas quem segue. Ou seja: a maioria de todos nós, de "nosotros". Dois ou três guiam a manada. Mais das vezes, para o pântano. Para o abismo. Para o escuro. Para o brejo. Ocasião em que as vacas todas - "nosotros, solamente esto" - damos com os burros n'água. E saímos escaldados. Tosquiados. Chamuscados. Quando conseguimos sair, "of course". O que é raro. Ou muito difícil. No geral, nem assim morremos. Apenas somos condenados a pagar. A pagar. A pagar. E a pagar sem fim. Sem jamais apagar essa conta cruel.

Por tudo isso, prosseguia o canto do jornal, é que cá se vendem militâncias. As melhores que já se viram por aí. Com bandeiras, flâmulas (sim, ainda trabalhamos com flâmulas), camisetas, abrigos, faixas e muito panfleto. Panfletos a mancheias com o pedido encarecido de não abandoná-los na sarjeta. Sujando a cidade. Poluindo a natureza. Emporcalhando as ruas. Entupindo os esgotos. Assoreando os córregos. Entulhando os rios. Esterilizando (inutilmente, o que é pior) os mares.

A ocasião é única. Imperdível. Compre já a sua (nossa) militância e desfrute das benesses do poder. Imagine: os times de futebol só têm um ano de usufruto. Os políticos têm quatro. "It's now or never", como diz a canção.

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 25/09/2008
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