CID A083 (sim... diarréia)
Certas doenças, muito embora não fatais (pelo menos na forma standard), possuem a surpreendente capacidade de aniquilar qualquer vestígio de dignidade humana.
Um exemplo típico é a diarréia.
Dois dias de infortúnio, e a única coisa que ainda me resta totalmente sólida é o caráter, e quem sabe uma ou outra partezinha da moral, mesmo que deveras abalada.
No mais, esvaem-se as impurezas liquefeitas ou então de consistência pastosa, quando muito.
Como se não bastasse a perda de dignidade intrínseca à atividade em questão, como assaduras cinematográficas em regiões que não conhecem o brilho do astro rei ou proeminentes marcas de freada na retaguarda de peças íntimas, como não poderia deixar de acontecer a nós, os Barbosas (vide copa de 50), sempre hão de surgir novos empecilhos de ordem conspiratória.
Nesta última segunda feira (o que poderia se esperar de uma segunda-feira?) alguns chamados da natureza de caráter emergencial durante a madrugada me fizeram concluir que a possibilidade de trabalhar e manter as calças limpas simultaneamente seria muito improvável. Resolvi, portanto, enforcar a labuta e ir ao médico, afinal, havia o plano de saúde da empresa. Hospital chique, metido a bacana... O que poderia dar errado?
Foram quase três horas esperando o maldito médico. As duas primeiras horas foram até que foram aceitáveis... A última meia hora pareceu uma eternidade.
A pior parte foi ler as inúmeras plaquetinhas nos balcões de atendimento descrevendo a missão, os valores e as diretrizes do hospital, que eram algo do tipo: ser o melhor prestador de serviços médicos do sul do mundo, amar ao próximo como a ti mesmo e acabar com as doenças universais, respectivamente.
No final do longo período de espera, já desejava, do fundo do meu coração, enfiar gentilmente a carteirinha do plano de saúde junto com a tal plaquetinha no reto da atendente do balcão.
Àquelas horas eu já me arrependia amargamente por não ter ido a um posto de saúde qualquer do SUS. Afinal, se for pra ficar horas esperando, que seja num posto de saúde, onde eu não seria a figura mais grotesca do lugar, mesmo que completamente cagado.
Mas eu agüentei. E foi exatamente entre a vontade de correr pra "casa de força" e o medo de perder a minha vez no atendimento e ter que esperar mais três horas, que residiu minha bravura. E então, posto que o sol brilhe até pra cachorro (a sombra é que aparece só pra um ou outro), eis que chega minha vez.
Para minha sorte (sorte?), a consulta médica foi rápida. Durou apenas o tempo necessário para se ratificar o óbvio: A chave era hidratação e reconstituição da flora intestinal. Assim, o doutor receitou algumas amenidades e o resto caberia à própria natureza. Definitivamente, um diagnóstico fenomenal. Coisa de gênio.
De qualquer forma, a consulta foi útil para dois propósitos: Certificar-me de que não possuía nenhuma doença bizarra que poderia me matar em poucos dias e que um clínico geral de pouca experiência (como o médico que me atendeu) dificilmente diagnosticaria; e conseguir um atestado para amenizar meu saldo devedor no “banco de horas” da firma (como se o “banco de dinheiro” não fosse mazela suficiente).
De atestado em punho e já com princípio de câimbra no esfíncter, fui levado de volta para o conforto do lar. Durante o percurso, feito, aliás, em tempo recorde por minha dulcíssima respectiva (Claudinha, que devia tentar entrar no ramo de pilotagem estilo “velocidade na terra”), tive até alguns pensamentos eróticos que envolviam o vaso sanitário e o assento da privada. Mas, como de costume, no final tudo se resolveu.
Cheguei ao banheiro em tempo hábil e a ordem natural das coisas foi seguida. A cerâmica agüentou a pressão, e essas horas o resultado da operação deve estar navegando sob ventos tranqüilos pelo lago do parque General Iberê de Mattos (vulgo parque Bacacheri).
Felizmente, tanto minha dignidade quanto o asseio do banco do carro da Claudinha foram devidamente preservados.
Amém.