NEVOEIRO
No nosso penúltimo dia em Gramado um espesso nevoeiro cobriu a cidade e esse acontecimento nos deslumbrou sobremaneira. Já desfrutáramos outrora momentos semelhantes e de igual encanto em outras ocasiões, mas naquele dia a névoa era como um imenso floco de algodão denso enfaixando a cidade num sereno abraço de amor. Lembrava, também, de tão forte, a volúpia da violenta fumaça subindo das queimadas criminosas devastadoras de nossas florestas. Mas só por instantes, naquele interlúdio não tinha espaço para melancolia. Eu e Ana Estávamos extasiados e mais ainda ficamos, alegres feito crianças descobrindo o invulgar, sorrindo parecendo tocados pelo vírus da alegria contagiante que rapidamente se espalha em fragmentos poderosos.
Nós nos abraçávamos incontidos, à guisa de impulsionados por algo inexplicável. Talvez para desabafar a felicidade sufocada no peito, quiçá no intuito de captar esse embevecer momentâneo e prendê-lo n'alma a sete chaves. Passeando e usufruindo as últimas horas na Serra Gaúcha, certamente queríamos fotografar com os olhos e gravar na retina cada toque místico a dali emanar, cada súbito relance de impecável beleza distinguida e inesquecível. A ansiedade e a emoção aceleravam as batidas felizes do coração e nos deixávamos seguir, assim, espontâneamente de mãos dadas, quase sem rumo, dois perdidos numa tarde de nevoeiro ímpar se encontrando sob frio intenso, a visão um tanto turvada pela densidade daquele fenômeno maravilhoso e impossível no Nordeste. Mas o riso constante e evidente no rosto corado pela emoção.
Conseguíamos enxergar apenas uns reles metros à nossa frente, e nessa desmesurada e atraente incógnita é que estava, também, outro entre os tantos encantos proporcionados pelo altruísmo da natureza e seu bafejo branco-acinzentado cobrindo tudo. Proporcionando tal indizível espetáculo, ela mexia com nossa sensibilidade e nos tocava a alma de maneira serenamente delicada. E tudo aquilo pareceu-me metafísico, meio que imiscuindo-se pelo sobrenatural. Numa alegoria, vamos agora ser bem ser criativos, inconcebível dir-se-ia que anjos brincavam de jogar fragmentos de neve uns nos outros e eles se iam dissipando em suave névoa caindo sobre nós, deixando gotículas imperceptíveis e umedecentes sobre os cabelos.
Andávamos cautelosos por entre os densos blocos indolentes de névoa etérea e fumaçante vendo as pessoas sorrindo aparentemente sem razão nenhuma, mas eu percebia que era o estado de espírito do tempo o responsável pelo bom humor estampado em cada face. O gostoso clima parecia abrir os corações e libertar as almas da prisão corpórea. Por breve instante observei três senhores já idosos proseando sorridentes num banco da praça, todos gesticulando com os braços, as pernas cruzadas, os olhos brilhando, como se partícipes de outra dimensão. Fui surpreendido pela terna serenidade de cada um deles.
Na sequência de fotos para registrar e tornar perene tão precioso momento fizemos poses, abraçamos o nevoeiro que nos escapava por entre os dedos, corríamos embalados e sapecas à guisa de travessos garotos fugindo dos carros como se eles fossem monstros de imensos olhos amarelos e fomos abordados por outros turistas para fotografá-los e por eles sermos também retratados, parceria que resultou em inesquecíveis retratos a serem conservados para a posteridade.
A tarde desse dia, no entanto, dava a impressão de não desejar prosseguir,como se o tempo subitamente tivesse congelado por causa do frio trazido pelo ímpeto do nevoeiro. Talvez a magia emanando em derredor ante tamanha demonstração de poder da natureza deixasse transparecer no ar gelado e orvalhante um lindo toque de fantasia a envolver-nos. Ou devaneios, por certo. Uma mescla inconsequente de tudo isso decerto, pois os mistérios ainda são tantos quando somos dominados por essa aura de emoção acalentadora que por inúmeras vezes nos leva a embrenhar-nos em quimeras fantásticas, a tresvarios até. Porque as emoções nos controlam bem sabemos e por elas nos deixamos levar, poeira arrancada do chão ao sabor da ventania.
Jantamos no La Caceria, restaurante da Avenida Borges de Medeiros especializado em caças nobres, nos deleitando com um delicioso e sublime faisão regado ao vinho. Quando voltamos para o hotel já a noite, nervosa e agarrada ao novoeiro, ia altaneira enveredando pelas horas e nos engolia abrupta nas suas sombras e luzes e nos presenteava com uma temperatura beirando os - brr! - dois graus. E despencando paulatinamente. Devidamente paramentadas, as pessoas circunstantes, agora cabisbaixas, rondavam pelos fundues e restaurantes em busca de aconchego e tepidez porque, sendo criança, a noite ainda tinha muito a oferecer.