Bob, Che e Nietzsche
Dizem por aí que o primeiro passo em direção às drogas é o álcool. Pode até ser. Acho que comigo foi diferente. Alguns mais fantasiosos apelam para explicações sócio-filosóficas, aristotélicas, blá, blá, blá. Pulando a parte do conceito (partindo do pressuposto de que todos saibam o que são drogas e o que elas fazem), vamos direto ao assunto: drogas e seus efeitos. Maconha, cocaína etc. Nomes estranhos; familiares para alguns; motivo de vergonha para outros; prazer para uma parcela.
Prazer. Está aí um bom escape. Comecei a usar por prazer. Um baseado ali, outro aqui. Uma cheirada lá, outra acolá. E estava feito o estrago. Se meu número de neurônios já era reduzido, depois do clímax tornou-se menor ainda.
Estavam todos reunidos. Festa de família. Aparências. Titia gorducha rindo das piadas sem graça de papai e mamãe olhando fixamente no vestido de minha outra tia, evangélica. Bob Marley pregado na parede. Nietzsche no chão. Che no peito. E, claro, um baseado, quase no fim, metido nos lábios. Tragava ilusões. Soltava decepções. Ria de tudo: da hipocrisia, sexo, Che, Beatles, minha existência. Um soco na porta (pela força era papai). Abanei os braços tentando dispersar a fumaça. Peguei uma balinha de menta extra-forte e a chupei. Disfarçar o cheiro é necessário, ainda mais quando a família não sabe do vício. O cheiro esvaeceu. Um hálito refrescante. "Desce menino!" papai disse e saiu pisando alto. Abri e fechei os olhos. Estava alucinado. Via dois Bob na parede. Os livros de Nietzsche esparramados se multiplicaram. Até Che virou quatro, acho que ele chamou seus amigos da pesada para um combate (dentre eles, um tal de Fidel, conhecem?). Vesti o restante da roupa. Caminhei agarrado na parede. Até a escada cresceu. Havia trezentos degraus. Agarrei-me ao corrimão. Desci degrau por degrau. Lá pelo quarto virei para ver o que Che queria. E...
Sim, meus caros. Espatifei no chão. Pelo susto titia gorducha derramou café no vestido de mamãe. Gritos. Correria. Vermelho. Um som esquisito. Perguntei para o Bob Marley que ritmo era aquele. Não respondeu. O Che sorria para um dos barbudos. Acordei três horas depois. Branco. Um barulho agudo irritante. Cochichos. Mamãe me abraçou. Fez umas quinhentas perguntas do tipo: "ta doendo?". Titia gorducha estava roncando no sofá. A evangélica orava fazendo uns gestos estranhos com a mão. Papai andava de um lado para o outro.
O médico entrou. E disse simplesmente "o senhor quase teve overdose." Pasmei. Mamãe desmaiou. Titia gorducha acordou num pulo. E a evangélica intensificou os gestos. Papai arregalou os olhos. "deve ter mais cuidado; ser mais consciente e não usar entorpecentes." Um manual de instruções (como se fosse seguir). Estava nu. Absolutamente.
Depois disso, minha vida virou um inferno. Ditadura. Anarquia. Qualquer um desses nomes que signifiquem pouca liberdade. Se me arrependo? Não. Tudo tem um motivo. Mas, igual Raulzão não recomendo a ninguém. É um buraco sem fundo. No meu caso, a família foi essencial para minha recuperação. Hoje, tô aí novinho em folha (entende-se: desintoxicado). Meus filhos? Mato-os se usarem. Há outras formas de se revoltar. O escape é um estigma. Livre-se, pois, dele!