Como mudam as coisas...

Quando me nasceu o dente do siso, era bancário, trabalhava numa agência perto do Largo 13, em Santo Amaro, São Paulo. Agência grande, moderníssima, padrão 2000, cujo estacionamento imenso contava com clinica médico-odontológica, gratuita, a disposição dos funcionários. Era assim. Não sei se continua, pois, faz mais de dez anos, tempo suficiente para o capitalismo mudar de apetite.

Por essa ocasião fui ao dentista e fiz uma micro-cirurgia para desobstruir a passagem à afloração do temido e problemático siso. Desde então nem dava graça ir ao dentista. Todos tinham o mesmo discurso; que eu tinha perfeita dentição e bastava manter os cuidados básicos com higienização. À mim, não passava de um especialista em ossos falando sobre ossos. Nada mais. Jamais me plantei ao espelho e “ai como são lindos meus dentes”. Nunca valorei isso.

Passam-se os anos e as coisas mudam. Os pensamentos mudam, a pele muda, o corpo inteiro muda; até mesmo o desejo toma outros rumos (aviso aos mais pudicos que qualquer hora falo disso). As amizades, então, como mudam.

Veio-me o briquismo, o ranger de dentes provocado por entortamento oclusal - o dicionário Aurélio e os dentistas dizem bruxismo. Mas eu odeio o termo e sustento-me exclusivamente no dicionário Houaiss, que se justifica na etimologia: briquismo, ranger de dentes!

Além da dor insuportável, vão-se entortando os dentes, aparecem odores estranhos e o sorriso lindo torna-se escabroso. Um chavão aqui vai bem: a coisa fica preta! Tipo Zé do Gás: corpo perfeito até o abrir da boca.

Aconteceu comigo e o dentista me levou uma nota! Ainda está levando. Receitou-me uma placa protetora que agüenta a chamada mordida de tigrão! Posso ranger à vontade que os dentes não se tocam e, consequentemente, não se gastam.

Estou montando a tese de que esse rilhar de dentes é provocado pelo siso. Esse dente provoca a sensação de intensa opressão. Quando é extraído, fica-se leve, e é-se invadido por extraordinária sensação de desopilação e bem-estar.

Diariamente me coloco ao espelho e examino cada dente. O par de sisos restante, amanhã entrará no torquês de Ibrahim e então o jogarei, com prazer, no lugar que há muito deveria estar: no lixo!

Fora isso, a dentição está pronta para morder com elegância. Somente agora atino ao valor dos ossos, dos dentes. Como mudam as coisas!