CIÚME; ENTRE O CÉU E O INFERNO
Ciúme e Doença Mental.
Na prática clínica, o primeiro ponto importante quando diante de um indivíduo com preocupações de ciúme seria avaliar a racionalidade ou não dessas preocupações, assim como o grau de limitação ou prejuízo que acarretam. O grau de prejuízo costuma ser diretamente proporcional ao caráter patológico. Não raro, atualmente, as preocupações com fidelidade não chegam a ser absurdas e muitas vezes são bastante compreensíveis.
A seguir, deve-se buscar um entendimento psicopatológico do sintoma, diferenciar se o fenômeno se trata de uma idéia obsessiva, prevalente ou delirante. Nesse sentido, é fundamental avaliar o grau de crítica do indivíduo em relação a essas preocupações. Como se sabe, uma pessoa pode estar delirante, ainda que o cônjuge de fato o(a) esteja traindo. Isso ocorre quando a crença na infidelidade for baseada em fatos ou atitudes que em nada a justifiquem, e se for inabalável e irremovível pela crítica racional.
O terceiro aspecto seria a busca do diagnóstico responsável pelo sintoma, o qual, como dissemos, pode se tratar de uma obsessão, idéia prevalente ou delírio. Nunca é demais ressaltar que, da mesma forma que a ocorrência de delírios não implica nenhum diagnóstico específico, obsessões e compulsões não são sintomas característicos e exclusivos do Transtorno Obsessivo-Compulsivo.
As obsessões podem acompanhar outros quadros psiquiátricos como, principalmente as depressões, demências e esquizofrenias. Sintomas depressivos podem ainda ser co-mórbidos e secundários ao Transtorno Obsessivo-Compulsivo, o que ocorre com muita freqüência, dificultando o diagnóstico diferencial.
Além da análise dos sintomas, investigando a natureza da preocupação de ciúme e a força da crença, é fundamental avaliar também se o sofrimento gerado tanto para o indivíduo quanto para o cônjuge, o grau de incapacitação no trabalho, na vida conjugal, no laser e na sociabilidade, ver ainda o risco de atos violentos e a qualidade global do relacionamento.
Deve-se ainda considerar os fatores de predisposição emocional, como por exemplo, os sentimentos de inferioridade e insegurança, os transtornos psicológicos atuais ou anteriores, as experiências passadas de separação ou traição, traumas de relacionamento dos pais. Os fatores precipitantes também merecem atenção, como é o caso do estresse atual, das perdas, mudanças e comportamentos provocativos do cônjuge. É sempre necessária uma avaliação cuidadosa e global em cada caso em particular.
O Ciúme Patológico pode coexistir com qualquer diagnóstico psiquiátrico. Entre pacientes internados os delírios de ciúme foram encontrados em 1,1 % deles. As prevalências diagnósticas foram as seguintes: psicoses orgânicas em 7%, distúrbios paranóides em 6,7%, psicoses alcoólicas em 5,6% e esquizofrenias em 2,5%. Em pacientes ambulatoriais o Ciúme Patológico relaciona-se em grande parte a quadros depressivos, ansiosos e obsessivos. A maciça maioria dos portadores de Ciúme Patológico, entretanto, não está dentro dos hospitais e nem nos ambulatórios. Fonte: Texas Tech Universuty
São bastante conhecidos os delírios de ciúme de alcoolistas, ao ponto desse sintoma ser considerado, durante algum tempo e por alguns autores, característico do alcoolismo. Destacava-se a impotência sexual proveniente do alcoolismo como importante fator no desenvolvimento de idéias de infidelidade, relacionadas a sentimentos de inferioridade e rejeição.
Nas mulheres, fases de menor interesse sexual ou atratividade física, como ocorre na gravidez e menopausa, produziriam redução da auto-estima, aumentando a insegurança e a ocorrência do Ciúme Patológico.
A prevalência do Ciúme Patológico no Alcoolismo gira em torno de 34%. A evolução comum do Ciúme Patológico como sintoma do alcoolismo, pode ser, inicialmente, apenas durante a intoxicação alcoólica e, posteriormente, também nos períodos de sobriedade.
Na Esquizofrenia, a prevalência do Ciúme Patológico com características delirantes em pacientes internados costuma ser de apenas 1 a 2,5%. Seria bem mais freqüente em transtornos de demências e em quadros depressivos do que na esquizofrenia. No Transtorno Paranóide, os delírios de ciúme costumam aparecer em 16% deles.
Pode-se ainda ter o delírio de ciúme bem sistematizado em sua forma pura, sem alucinações ou deterioração da personalidade, numa apresentação monossintomática. Este quadro atualmente denominado Transtorno Delirante de Ciúme, seria bem mais raro. No DSM.IV os Critérios Diagnósticos para Transtorno Delirante, onde se inclui o Transtorno Delirante de Ciúme seriam:
A. Delírios não-bizarros que envolvem situações da vida real, tais como ser seguido, envenenado, infectado, amado a distância, traído por cônjuge ou parceiro romântico ou ter uma doença com duração mínima de 1 mês.
B. O critério A para Esquizofrenia não é satisfeito.
Nota: alucinações táteis e olfativas podem estar presentes no Transtorno Delirante, se relacionadas ao tema dos delírios.
C. Exceto pelo impacto do(s) delírio(s) ou de suas ramificações, o funcionamento sócio-ocupacional não está acentuadamente prejudicado, e o comportamento não é visivelmente esquisito ou bizarro.
D. Se episódios de humor ocorreram durante os delírios, sua duração total foi breve relativamente à duração dos períodos delirantes.
E. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância, como por exemplo, uma droga de abuso, um medicamento ou não se deve à uma condição médica geral (onde se exclui o ciúme do alcoolista).
Especificar tipo (os tipos seguintes são atribuídos com base no tema predominante do(s) delírio(s):
Tipo Erotomaníaco: delírios de que outra pessoa, geralmente de situação mais elevada, está apaixonada pelo indivíduo.
Tipo Grandioso: delírios de grande valor, poder, conhecimento, identidade ou de relação especial com uma divindade ou pessoa famosa.
Tipo Ciumento: delírios de que o parceiro sexual do indivíduo é infiel.
Tipo Persecutório: delírios de que o indivíduo ou alguém chegado a ele está sendo, de algum modo, maldosamente tratado (grifo meu).
Tipo Somático: delírios de que a pessoa tem algum defeito físico ou condição médica geral.
Tipo Misto: delírios característicos de mais de um dos tipos acima, sem predomínio de nenhum deles.
Tipo Inespecífico.
Há vários anos suspeita-se que o Transtorno Obsessivo-Compulsivo poderia se manifestar como Ciúme Patológico. Nesse caso os pensamentos atrelados ao Ciúme Patológico seriam indistinguíveis dos pensamentos obsessivos. Os pensamentos de ciúme seriam ruminações e as buscas por evidências da infidelidade, rituais compulsivos de verificação. Muitos pacientes teriam crítica e constrangimento por esses pensamentos e se esforçariam para afastá-los.
De algum tempo para cá, vários autores têm sugerido a relação entre Ciúme Patológico e Transtornos Obsessivo-Compulsivos (Shepherd, 1961). Desta forma, pensamentos de ciúme podem ser vivenciados como excessivos, irracionais ou intrusivos e podem levar a comportamentos compulsivos, tais como os de verificação compulsiva. Ao se considerar os tipos Ciúme Patológico, podemos observar que, enquanto no Ciúme Delirante o paciente está solidamente convencido da traição, no Ciúme Obsessivo ele sentirá dúvidas e ruminações sobre provas inconclusivas, em que certeza e incerteza, raiva e remorso alternam-se a cada momento.
É importante ressaltar que em estudos sobre TOC, o tema do Ciúme Patológico é pouco abordado, possivelmente por não ser um sintoma muito típico, e em trabalhos que estudam o Ciúme Patológico em geral, sua apresentação como uma manifestação sintomatológica do TOC também é pouco enfatizada, talvez por não estar entre os sintomas mais freqüentes.
Sob vários aspectos constata-se que os pensamentos de ciúme partilham várias características com os pensamentos das obsessões: são freqüentemente intrusivos, indesejados, desagradáveis e por vezes considerados irracionais, em geral acompanhados de atos de verificação ou busca de re-asseguramento. Os indivíduos que avaliam suas atitudes como inadequadas ou injustificadas teriam mais sentimentos de culpa e depressão, enquanto os demais apresentariam mais raiva e comportamentos violentos.
Os pensamentos ou ruminações obsessivas de ciúme diferem das suspeitas de ciúme na medida em que são facilmente reconhecidos pelo paciente como ego distônicos, ou seja, irracionais e associados à resistência e culpa, enquanto as preocupações mórbidas são sintônicas, consistentes com o estilo de vida e centradas em problemas realísticos do indivíduo, raramente resistidas e só algumas vezes associadas à culpa.
Assim, nos pacientes obsessivos as preocupações de ciúme tipicamente envolvem maior preservação da crítica, mais vergonha, culpa e sintomas depressivos, menor agressividade expressa e muitas ruminações e rituais de verificação sobre acontecimentos passados. De fato, há casos em que predominam comportamentos relacionados à depressão, tais como: retraimento, dependência e maior demanda por demonstrações afetivas, por vezes alternados com raiva, ameaças e agressões.
O ciúme considerado normal dá-se num contexto interpessoal, entre o sujeito e o objeto, enquanto o ciúme no Transtorno Obsessivo-Compulsivo seria intrapessoal, só dentro do sujeito. O ciúme normal envolveria sempre duas pessoas, e os pacientes melhorariam quando sem relacionamentos amorosos.
No Ciúme Patológico o amor do outro é sempre questionado e o medo da perda é continuado, enquanto no amor normal (ou ideal) o medo não é prevalente e o amor não é questionado. No Transtorno Obsessivo-Compulsivo há sempre dúvida patológica com verificações repetidas, mesmo fenômeno que se observa no Ciúme Patológico. O medo da perda é também um sintoma proeminente no TOC, tanto quanto no Ciúme Patológico. Neste, a perda do ser amado não diz respeito à perda pela morte, como ocorre num relacionamento normal, mas o temor maior, o sofrimento mais assustador é a perda para outro(a).
As obsessões, seriam definidas por:
(1) pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento.
(2) os pensamentos, impulsos ou imagens não são meras preocupações excessivas com problemas da vida real.
(3) a pessoa tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens, ou neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação.
(4) a pessoa reconhece que os pensamentos, impulsos ou imagens obsessivas são produto de sua própria mente (não impostos a partir de fora, como na inserção de pensamentos).
A ausência do termo ciúme nesses critérios seria o maior responsável pela relutância de muitos autores em diagnosticar o TOC em casos cuja apresentação é centrada em preocupações de infidelidade. Apesar de haver temas de idéias obsessivas mais freqüentes no TOC, as possibilidades de conteúdos obsessivos e rituais compulsivos são infindáveis. Não há também nenhuma regra proibindo as idéias obsessivas de envolverem o tema ciúme com a mesma força que envolve a contaminação, sujeira, doença, etc.
Devido a essa resistência em se considerar o Ciúme Patológico como um Transtorno Obsessivo-Compulsivo normal com a diferença única no tema da idéia obsessiva, existem termos variantes do TOC, tais como Ciúme Obsessivo, Ciúme Obsessivo-Suspeitoso, forma Obsessivo-Compulsiva de Ciúme Patológico ou Ciúme com Características Obsessivas, evitando-se falar diretamente em Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Talvez pelo tema ciúme ter forte natureza paranóica, a aproximação mais natural do transtorno seria com idéias delirantes e quadros tradicionalmente psicóticos.
O ciúme erudito ainda pode ser concretizado na forma de letra de música, para eternizar uma rivalidade entre povos de duas cidades pelo carinho de um rio que as corta. Em “O Ciúme”, de Caetano Veloso, a gente de Juazeiro na Bahia e Petrolina em Pernambuco, rivaliza-se durante séculos para adotarem a guarda poética do Rio São Francisco e desta forma, não podemos qualificar o sintoma como patológico ou assintomático; as pessoas sentem ciúme de uma forma ou de outra e nem sempre devem ser rotuladas como transtornadas compulsivas, afinal de contas, elas nutrem harmoniosamente um sentimento de pureza que não abala as relações sociais de convivência.
Eu tenho ciúmes e admito isso, sabendo ao certo por qual razão (as vezes); e você, qual o seu tipo mais comum de ciúme?
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
SITE DO AUTOR: www.irregular.com.br