Quando os feijões tinham pedras

Sentada à cabeceira da grande mesa de madeira pintada de cor clara, na copa de piso de cimento queimado vermelho, minha avó de cabelos longos e negros catava o feijão. Feijão catado, o feijão escolhido por mão hábeis que sabiam - sem necessidade de óculos ou de uma iluminação especial - o que era pedra, o que era torrão de terra e o que era o feijão bom. Todos da mesma cor, porque aqui no estado de São Paulo o feijão que se come, na imensa maioria das vezes, é o carioca, enquanto no Rio de Janeiro é o feijão preto.

(Por analogia, o feijão preto talvez devesse se chamar Paulista?)

E minha avó pegava o feijão catado e botava para cozinhar no fogão a lenha que perfumou minha vida para sempre com seu cheiro defumado de paz. Minha avó cozinhava o feijão e o temperava na banha com fartura de alho e cebolinha verde. E quando punha um ‘cudiguim’ - um tipo de lingüiça fresca e macia, feita sabe-se lá de que partes do porco, e originária da Itália pobre de meus avós - aquele feijão adquiria um sabor especial, jamais repetido em toda as minhas já numerosas estações.

Nas vezes em que auxiliei minha avó a catar o feijão, era freqüente o erro. Separava feijões bons e deixava pedrinhas e pequenos torrões de terra entre eles. Catar arroz era mais fácil, pois o arroz era branco e as pedras contrastavam com eles; as sementes alienígenas, milho, alpiste ou às vezes um ou outro pequeno feijão, também. Porém no caso dos castanhos feijões sobre a mesa clara, a dúvida se instaurava porque as evidências eram sensivelmente menores.

Não aprendi a separar as pedras dos feijões. Não tive a habilidade que minha avó tinha, ainda que enxergando muito mal, a catar feijões e poupar nosso paladar de sentir o gosto da terra ou trinchar com os dentes uma dura pedra lavada pelo cozimento. Porém ainda que os feijões modernos não tenham pedras, e não haja mais necessidade de catá-los – e ainda bem, pois meus olhos já não são os mesmos – continuo cega para certas diferenças.

Devia ter tentado desenvolver a habilidade de separar as pedras dos feijões, quando os feijões tinham pedras. Assim teria, hoje, a capacidade de separar o joio do trigo, mesmo que não saiba o que é um joio. E ainda que não haja trigo para catar.