O garupeiro fantasma
Itamaury Teles
Enquanto eu assava um pedaço de alcatra, numa criativa churrasqueira feita em um tambor de freio de caminhão, no pátio da fazenda do Nivaldo Magalhães, Zé Ferreira era meu companheiro de prosa, numa noite fria no Rebentão dos Ferros.
Seus casos eram sempre muito interessantes, pela riqueza de detalhes e pelo inusitado dos fatos que narrava, envolvendo assombrações e caçadas pelas matas da região.
Naquela noite ele contou-me um caso de assombração. Sua cachorra Americana, enrodilhada no próprio corpo, vigiava atenta encostada na parede, talvez à espera de um naco de carne.
- Aconteceu um caso feio comigo – começou Zé Ferreira. Nesse tempo eu era vaqueiro do finado Juca Cândido. Eu trabaiava mais ele no Sanharó. Mas ele tinha uma fazenda nos Espim, pra cá de Burarama. Lá tinha um sujeito que tomava conta. Chamava Conceição. Eu fui pra lá pra ajudá ele a ferrá o gado, os garrote. Aí, ficou mêi tarde e eu interessado numa festa cá. Eu era solteiro nesse tempo. Eu tinha uma noiva disgramada de bonita e falei: - Ô, Conceição, eu vou mimbora! Ele disse: - Tá doido, moço? Cê ir embora? Num convém não! Eu falei: Quá meu amigo, a mula qui eu vim montado tá discansada. Eu num trabaiei nela esta semana. Eu vou mimbora que eu quero ir na festa. A menina tá lá. Ela chamava Maria Alves. Aí, rapaz solteiro é muito disgramado. Tinha uma venda arretirado de lá da fazenda, cumo daqui ni Tiãozinho, nessa cabeceira. Falei: eu tenho que passar na venda, lá eu tomo um golo e emendo esse trem afora. Aí maisomeno uma hora da madrugada eu tô lá. Isso é eu fazeno os cálco, né! Eu tinha um terno de couro muito bom, que meu patrão era muito caprichoso, muito bom. Ninguém podia trabaiá sem coro nesse tempo. Hoje não. Tá tudo limpo, até de a pé cê rompe no mato, né? Aí, fiz os cálco e disse: eu vou mimbora! Aí tirei a rédia de um cavalo que eu tava cum ele e fui lá no mangueiro e toquei a mula. Cheguei, arriei. A patroa dele já tinha trazido a janta. Jantei, bebi uns três gole dágua. Jantou, bebeu uns dois gole dágua ocê pode sair mastigano, montano no maior burro qui num tem pirigo. Chegou lá na venda, disapiei. Comprei uma garrafa de pinga, pus no imbornal. Num quis tomá dentro da venda, não. Depois de um tempo parei pra discansá. Parei a mula e tomei um golo. Fui imbora. Quando eu cheguei num lugá, lá era um sobrado véio, tem esse trem até hoje lá. Chama Piteira. É diante do Sanharó. Chegano no rio do Ribeirão. Quando eu vou desceno o rio, moço, a mula parou. Num güentô rompê. Batia a espora nela, chegava gemê. Quandeu virei o quêxo... moço...tava um homão muntado na garupa da mula. As perna rastano no chão! E a mula fazeno força pra andá! Quedê! Ela num güentava! Era um homão preto, de óculos. Na mesma hora, moço, senti aquele frio no corpo. Chegô quemá! Eu até pensei que tava sem chapéu. Ponhei a mão na cabeça e o chapéu tava lá. Eu acho que foi o medo que foi acochano. E assim vai a mula devagarzim, devagarzim, lá vai, lá vai, mas sem podê rompê. Ah! minino, quando rompeu cumo daqui ni Manoelino, esse trem pulou no chão...ô rapaz...quando pulou no chão, eu só vi essa mula subi cumigo, mas foi numa artura doidia, que eu fui aqui, fui acolá, que eu perdi o estribo. Quase eu caio. Quas caí mesmo! Cacei a cabeça dela no chicote e num achei. Eu falei: agora tá danado! Ô moço, quando essa mula conheceu que não me tirava, mas essa mula prantou uma carreira, que eu vou te contá um caso... Eu bati a mão na rédia, era mesmo que batê num chanfrão desse. Eu tinha força nesse tempo. Eu era um sujeito de força mesmo! Eu falei: É...dêxa esse trem corrê... Vamo vê onde vai acabá. Ah! Correu uma légua! E lá nessa artura, pra chegá na cancela da fazenda de Ilídio Reis, era um cancelão danado! Ela chegou e bateu: pá! pá! Mas cadê tirá eu? Tirava não. Eu num caía, não. Aí quetô. Passei, froxei a rédia e eu deixei ela corrê. Ela quiria corrê, eu deixei ela corrê. Quando chegô lá, quem é que tirô a sela dela? Foi a derradera vez que eu muntei nela. Ninguém muntou mais nunca! A mula ficou doidia. Ficou doidia. Ficou assombradazinha! Eu acho que aquilo era uma alma, um trem, um vaqueiro... Rastava os pé no chão e era magrim, magrim. Mas a mula não güentava caminhá. Cê pode crer...