SOMBRAS DO CORAÇÃO

Estávamos sentados, lado a lado, apreciando uma dessas lindas noites de outono e , em virtude de estarmos no campo, num cenário rural, onde tudo é mais puro, mais cristalino, valorizava em muito aquele momento de reflexão. Era sexta-feira santa.

Fiquei aguardando que meu velho amigo se pronunciasse sobre aquela divina obra criada por Deus. Ele que, horas antes, acabara de ver satisfeita a sede da hipocrisia humana , com a crucificação de seu filho.

Só posso acreditar que aquela bela visão, aquela gratificante obra prima, despertou meu amigo para algo que lhe devia estar incomodando e sufocando. E tive esta certeza quando ele resolveu abrir o coração. De fala amena , mas, carregando uma tonalidade angustiada, ele disse: “ O que foi que eu fiz da minha vida?” . Aguardei, então, e ele continuou: “ Acho que não tive a sorte de receber bons ensinamentos de vida, porque desde criança eu me imaginava o mais sabido, o mais esperto, o melhor nos jogos, o mais malandro, o mais engraçado, o que enganava melhor, sem enxergar, entretanto, que eu era mau aluno, que minhas brincadeiras faziam rir, mas não faziam amigos; que malandragens e enganações só desencadeavam desconfianças; que orgulho e vaidade são sentimentos mesquinhos e que não há necessidade de que você mesmo exalte os seus valores. Quando você os tem , as pessoas os reconhecem, naturalmente. Já na fase do adultismo, não soube aproveitar as oportunidades que surgiram na área do trabalho, não me preocupei com a aposentadoria, vivi um casamento de insatisfações, por minha culpa exclusiva. Nada passei de importante a meus filhos e não lhes estou deixando qualquer legado que possa fazê-los se lembrar de mim com alegria” .

Após o desabafo, pude senti-lo mais leve, além de perceber, em meio àquela dor, como amadurecera aquele homem! Com toda a certeza, os erros levaram-no a uma realidade de vida mais séria e menos agressiva... mais respeitosa.

Questionei se haviam chances de tudo se refazer e ele respondeu: “ Claro que não. A vida é uma só. Agora é tentar remediar, embora eu não tenha credibilidade para isso. Mas, nem tudo está perdido, pois, peço-lhe que publique o que estou relatando e, quem sabe, muitos poderão se salvar com os exemplos de meus erros. Não resta dúvida que o tempo rouba-lhe a juventude, mas dá-lhe a sabedoria, e nesta verdade, depois de tantos anos, é que compreendi as palavras do compositor Roberto Carlos, numa música que dizia: “ Mas agora eu sei o que aconteceu, quem sabe menos das coisas, sabe muito mais que eu” .

A lua estava por esconder-se atrás de uma pequena nuvem. Meu velho amigo pensava alto, como se quisesse passar aos jovens de todo o mundo um ensinamento extraído de seus sofrimentos. Suspirou, profundamente, e continuou: “Passamos toda a vida aprendendo e morremos sem saber nada. Esta é a mensagem do sábio, pela qual nutrem desprezo o leigo, o teimoso, o vaidoso e todos aqueles que deveriam ter nascido com duas bocas e um só ouvido, em confronto com a maior sabedoria do homem: o silêncio” . Sorriu-me um pouco sem graça e, antes de se despedir, falou: “ Converse com as estrelas, com a lua. Conte-lhes seus problemas, suas decepções, suas alegrias, peça-lhes conselhos. Concentre-se, confie e tudo se resolverá. Elas são a voz de Deus” . Depois que o amigo se foi, passei no leito de meu filho e afaguei-lhe os cabelos.

Wellington Erse
Enviado por Wellington Erse em 19/09/2008
Reeditado em 20/09/2008
Código do texto: T1185438