Cachorrice

CACHORRICE

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 17.09.2008)

Todo dia era a mesma coisa e aquele cãozinho já começava a me irritar, ele conta: era sair de casa e o pestinha vinha para o muro latir desesperadamente para mim. Para qualquer pessoa que passasse pela rua, aliás. Para qualquer bicho também, cachorro, gato ou cavalo. Todos os dias assim, o cachorro do vizinho era infalível. Um dia, eu disse pra mim mesmo que ia acabar com aquilo, disse-me o Caio.

Foi só passar para o outro lado do portão, ele conta, colocar os pés na calçada e lá estava, impertinente, o cachorrinho esganiçando-se todo para mim. Contra mim. Olhei bem dentro dos olhos dele, procurando mostrar-me tão sério e furioso quanto possível e de uma forma que qualquer cachorro pudesse entender sem sombra dúvida o sentido da minha expressão, prossegue o Caio, e lati-lhe de volta muito mais alto e muito mais grosso: ele parou, surpreso e assustado, e pôs-se calado de imediato, o rabo entre as pernas.

E agora, Caio, interrogo o rapazinho de seis anos de idade (seis anos e nove meses, a bem da verdade), como é que o cachorrinho se comporta quando te vê ali na calçada?

Bem, agora ele não late mais para mim, nunca mais latiu. Só fica me olhando passar. E às vezes até foge assustado: quando eu chego perto e, rosnando surdamente, ameaço latir, ele corre para se esconder lá pros fundos do quintal do vizinho.

Vai ver, provoco-o, que ele olha para ti e pensa que és um cachorrão muito maior e bem mais feroz do que ele, um cachorrão de pêlo amarelo como o teu cabelo, um cachorrão que teve o rabo cortado quando ainda era pequeninho.

Caio ri, condescendente, como se me considerasse um perfeito idiota (o que talvez considere, de fato) e replica:

Não, não é nada disso. Ele pensa que eu engoli um cachorrão enorme que late dentro de mim.

Claro, exclamo: o cachorrinho fica com medo do cachorrão!

Caio me encara de novo, compadecido das minhas limitações que se lhe afiguram tão evidentes, e por fim digna-se a esclarecer esta mente perdida nas trevas da ignorância:

Não é nada disso. Ele pensa que, se eu engoli um cachorrão daquele tamanho, não terei dificuldade alguma de papar um cachorrinho insignificante como ele. Por isso tem, hoje, tanto medo de mim.

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Dança de Fantasmas (contos de amor)")

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 18/09/2008
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