A NETA DO OLEIRO
Tenho um sobrinho que é cardiologista. Ele diz que coração não dói. Mas dói. Desde que eu era bem pequena e puxo pela memória. A lembrança do galinheiro no quintal, daquele pozinho fino que acaba por se formar onde as galinhas ciscam mais. Lembro que entrava lá e ficava junto com as aves. Não se pode dizer que eram animais de estimação; apenas faziam parte de minha vida. Mas eu conhecia uma por uma, as cores de suas penas, seu tamanho, suas peculiaridades. Então, uma delas desaparecia e chegava o momento de descobrir o que havia acontecido... E eu me recusava a comer aquilo; mais ainda, não aceitava dormir com um travesseiro feito com aquelas penas. Não sei como minha mãe resolvia a questão, mas eu chorava e meu coração doía. Como doía, quando eu via, sobre o telhado do viveiro onde ficavam as aves menores, as enormes ampolas, que contavam, eram remédios para meu avô que estava doente. Era mamãe que cuidava dele... Lamento tanto que a lembrança seja tão vaga. A única recordação daquele tempo, além daquela do dia de sua morte, a primeira de uma pessoa querida com a qual tive contato, é a do caldeirão de água. Um bem polido caldeirão de alumínio em que era colocada a água potável. Quando eu ia beber água ele me vigiava:
-"Primeiro, tampe o caldeirão, depois, beba a água. Onde já se viu deixar pingar da água que você está bebendo lá dentro?" Isso era invariável.
O pó, a água, o barro. Meu avô tinha uma olaria; meu avô materno. Esse do qual empresto o sobrenome. Esse que veio de uma família do norte da África que emigrou para Veneza e depois para o Brasil. Esse que deixava que eu tomasse o barro nas mãos, colocasse nas formas, alisasse para fazer os tijolos que, suponho, talvez não fossem aproveitados. Um barro que fazia estrago nas roupas, nas fitas de cabelo, nos sapatos, mas que deixava a alma leve, exceto por uma vez em que caí dentro do tanque... O mesmo saibro que sempre pisoteei descalça depois da chuva, o mesmo saibro que tirava dos cortes de barranco para brincar de fazer panelinhas. Recentemente, ganhei uma foto de meu avô; eu não tinha nenhuma. Tenho uma tela em casa, pintada por meu pai, que reproduz uma cena em que o velhinho se parece com meu avô (materno) e a velhinha se parece com a minha avó (paterna). Contudo, não tinha nenhuma foto. Magro, alto, nariz adunco, sério. Quando já adulta, ganhei de uma tia um tijolo da antiga olaria, uma peça que deve ser centenária. A*S é o que está gravado. Azzi era o sobrenome; Stefano era seu primeiro nome. Inicialmente, fiquei muito animada. Hoje, no entanto, com meu coração que dói, pergunto-me de quê me serve ter esse tijolo, o que ele pode significar. O pó, o barro, o pó. Se eu soubesse dar-lhe um golpe de karatê, quebrá-lo ao meio e decifrar seu código. Lembro-me do conto de Jorge Luís Borges, “O Aleph”. O que posso encontrar de minha história ali dentro, além do pó do qual eu vim e para o qual retornarei?
Ali eu vejo a terra, que me acolhe e me alimenta; ali eu vejo o tempo, firme, condensado numa forma que resiste; ali eu vejo a marca que alguém deixou neste mundo; o trabalho paciente de preparar o barro, moldá-lo, colocá-lo em formas, pôr ao sol para secar e depois cozê-lo. Vejo o espírito paciente e criativo que herdei; a observação e a união com o elemento básico do qual somos feitos.
Lembro-me do tempo em que fazia terapia (mais de cinco anos que, no entender da terapeuta, de nada adiantaram porque não tomei as atitudes que deveria ter tomado...). Ela sempre me dizia que não entendia por que eu me dedicava à escrita. No momento de relatar os sonhos, eles eram sempre coloridos, cheios de detalhes envolvendo formas e texturas. Na opinião dela eu me daria bem em trabalhos de artes plásticas, a escultura, ela dizia. Mas eu escolhi as palavras. Por quê? Não sei... Talvez eu tente construir esculturas com as palavras, esculturas mentais, frágeis e mutáveis composições. Talvez eu tenha preferido ficar dentro de mim mesma, entendendo que estaria mais protegida. Mas hoje, meu coração dói. Como um tijolo, consolidado, ele precisa de um golpe de karatê que o desfaça em pedaços. Não existem mudanças quando há conforto. Para mudarmos é preciso que certo desconforto seja provocado. E meu coração dói, dói sim, dói mesmo, porque percebe que esse momento se aproxima...
Tenho um sobrinho que é cardiologista. Ele diz que coração não dói. Mas dói. Desde que eu era bem pequena e puxo pela memória. A lembrança do galinheiro no quintal, daquele pozinho fino que acaba por se formar onde as galinhas ciscam mais. Lembro que entrava lá e ficava junto com as aves. Não se pode dizer que eram animais de estimação; apenas faziam parte de minha vida. Mas eu conhecia uma por uma, as cores de suas penas, seu tamanho, suas peculiaridades. Então, uma delas desaparecia e chegava o momento de descobrir o que havia acontecido... E eu me recusava a comer aquilo; mais ainda, não aceitava dormir com um travesseiro feito com aquelas penas. Não sei como minha mãe resolvia a questão, mas eu chorava e meu coração doía. Como doía, quando eu via, sobre o telhado do viveiro onde ficavam as aves menores, as enormes ampolas, que contavam, eram remédios para meu avô que estava doente. Era mamãe que cuidava dele... Lamento tanto que a lembrança seja tão vaga. A única recordação daquele tempo, além daquela do dia de sua morte, a primeira de uma pessoa querida com a qual tive contato, é a do caldeirão de água. Um bem polido caldeirão de alumínio em que era colocada a água potável. Quando eu ia beber água ele me vigiava:
-"Primeiro, tampe o caldeirão, depois, beba a água. Onde já se viu deixar pingar da água que você está bebendo lá dentro?" Isso era invariável.
O pó, a água, o barro. Meu avô tinha uma olaria; meu avô materno. Esse do qual empresto o sobrenome. Esse que veio de uma família do norte da África que emigrou para Veneza e depois para o Brasil. Esse que deixava que eu tomasse o barro nas mãos, colocasse nas formas, alisasse para fazer os tijolos que, suponho, talvez não fossem aproveitados. Um barro que fazia estrago nas roupas, nas fitas de cabelo, nos sapatos, mas que deixava a alma leve, exceto por uma vez em que caí dentro do tanque... O mesmo saibro que sempre pisoteei descalça depois da chuva, o mesmo saibro que tirava dos cortes de barranco para brincar de fazer panelinhas. Recentemente, ganhei uma foto de meu avô; eu não tinha nenhuma. Tenho uma tela em casa, pintada por meu pai, que reproduz uma cena em que o velhinho se parece com meu avô (materno) e a velhinha se parece com a minha avó (paterna). Contudo, não tinha nenhuma foto. Magro, alto, nariz adunco, sério. Quando já adulta, ganhei de uma tia um tijolo da antiga olaria, uma peça que deve ser centenária. A*S é o que está gravado. Azzi era o sobrenome; Stefano era seu primeiro nome. Inicialmente, fiquei muito animada. Hoje, no entanto, com meu coração que dói, pergunto-me de quê me serve ter esse tijolo, o que ele pode significar. O pó, o barro, o pó. Se eu soubesse dar-lhe um golpe de karatê, quebrá-lo ao meio e decifrar seu código. Lembro-me do conto de Jorge Luís Borges, “O Aleph”. O que posso encontrar de minha história ali dentro, além do pó do qual eu vim e para o qual retornarei?
Ali eu vejo a terra, que me acolhe e me alimenta; ali eu vejo o tempo, firme, condensado numa forma que resiste; ali eu vejo a marca que alguém deixou neste mundo; o trabalho paciente de preparar o barro, moldá-lo, colocá-lo em formas, pôr ao sol para secar e depois cozê-lo. Vejo o espírito paciente e criativo que herdei; a observação e a união com o elemento básico do qual somos feitos.
Lembro-me do tempo em que fazia terapia (mais de cinco anos que, no entender da terapeuta, de nada adiantaram porque não tomei as atitudes que deveria ter tomado...). Ela sempre me dizia que não entendia por que eu me dedicava à escrita. No momento de relatar os sonhos, eles eram sempre coloridos, cheios de detalhes envolvendo formas e texturas. Na opinião dela eu me daria bem em trabalhos de artes plásticas, a escultura, ela dizia. Mas eu escolhi as palavras. Por quê? Não sei... Talvez eu tente construir esculturas com as palavras, esculturas mentais, frágeis e mutáveis composições. Talvez eu tenha preferido ficar dentro de mim mesma, entendendo que estaria mais protegida. Mas hoje, meu coração dói. Como um tijolo, consolidado, ele precisa de um golpe de karatê que o desfaça em pedaços. Não existem mudanças quando há conforto. Para mudarmos é preciso que certo desconforto seja provocado. E meu coração dói, dói sim, dói mesmo, porque percebe que esse momento se aproxima...