SOMOS TODOS MORTAIS
José Alexandre dos Santos Ribeiro é crítico musical. Na verdade dizer apenas isso sobre ele é muito pouco, mas é o que importa para esta questão: uma palestra na Academia Campineira de Letras e Artes: sobre Carlos Gomes.
Lembro-me de quando comecei minhas atividades na cidade de Campinas. Acreditava, convictamente, que todos conheciam bem duas coisas: a crônica de Rui Barbosa sobre o casarão que seria destruído, “As Andorinhas de Campinas” ; tudo e qualquer coisa sobre seu cidadão e grande compositor, Carlos Gomes.
Na primeira vez em que estive no prédio onde ficava escritório do meu contador, chamou minha atenção uma placa de bronze onde está assinalado: “Aqui é o local em que existiu a casa onde nasceu Carlos Gomes”. Tal fato causou-me grande impressão. O lugar pareceu-me mágico! Retive aquilo na memória, mas não o nome da rua ou o número do prédio: afinal eu registrara o mais importante. Quando novamente precisei voltar ao local, novata na cidade, entrei numa rua errada e não encontrava o meu destino. Não me abalei nem um pouco. Não era uma época com as facilidades de comunicação atuais, mas perguntar sempre funcionou. Então comecei a indagar: “- Estou procurando por um prédio que fica aqui por perto; sou de fora e não sei exatamente o endereço, mas sei que fica no local da antiga casa onde nasceu Carlos Gomes; onde fica, por favor?” Ninguém sabia! Assim como poucos sabem, segundo uma sobrinha trineta do músico contou-me, que os restos mortais dele estão sob o monumento a ele erigido no Cemitério da Saudade. Todos pensam tratar-se apenas de um monumento.
Parca cultura, memória curta e falta de reconhecimento para com o ilustre filho dessa cidade. Filho que mudou os rumos da ópera italiana, na Itália, que foi aplaudido de pé por nada mais nada menos que Verdi. Desde pequeno dotado para a música, filho de um músico pragmático, impressionou o imperador numa visita a esta cidade, tocando triângulo na banda “sinfônica” de seu pai. Teve facilidades e acesso às criações dos grandes músicos europeus cujas partituras seu pai importava. Chegou um momento em que tomou a decisão de afastar-se do pai, e isso só foi possível com um rompimento.
A postura paterna era a de ter os filhos ao redor, trabalhando com ele e ajudando-o. “Fugiu de casa”, indo procurar o imperador, buscou auxílio para levar adiante os seus estudos. Disse que queria ver o que poderia fazer com o pouco de inteligência que Deus lhe havia dado. Depois foi para a Europa e lá estudou. Formou-se duas vezes numa época em que não havia pós-graduação. Inovou, entre outras coisas no uso do coro e na interação do coro com a orquestra. Foi um autor disciplinado e não apresentava suas obras ao público antes de as haver primorosamente revisado. Nunca parou de estudar e sua obra não estacionou num determinado patamar; sempre evoluiu.
Tudo isso nos conta o Professor José Alexandre como se fora nada, sem precisar de consultas, com uma didática envolvente, que por ser verdadeira não transparece como tal: “-Ouçam este trecho, comparem com este outro; vejam a ação deste instrumento, a função do coro aqui é tal, vejam como Carlos Gomes inovou a partir desta composição...” . Como deixar de apreciar uma ópera apresentada dessa forma?
O programa incluiu também uma apresentação ao vivo de três peças musicais, uma delas chamada “Mamma dice”. O texto é humorístico e apresenta uma jovem contando o que lhe disse a mãe de ruim (ou das inconveniências) do amor e as idéias que ela contrapõe, dizendo que amar é bom e que não podemos ser felizes sozinhos.
Como a música era interessante, mas nem todos entendiam o italiano, Rui Barbosa, o escritor que foi para Londres e colocou uma placa em sua porta dizendo: “Aqui, ensina-se inglês aos ingleses”, decidiu fazer uma tradução da letra. E a fez, perfeita, em redondilha maior, mas deixou num verso um erro de concordância. “Só o amor nos faz feliz.”
Somos todos falíveis mortais.
(Texto baseado em informações veiculadas na palestra acima citada)
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Eis o belo texto sobre as andorinhas.
AS ANDORINHAS DE CAMPINAS
(Rui Barbosa)
Pelo límpido azul, já sem sol, antes que se lhe esvaia de todo o ouro de seus átomos de luz, mas quando o crepúsculo entra a desmaiar do seu brilho a safira celeste, um ponto retinto, perdido nos longes mais remotos, se acentua em negro na cúpula do firmamento, lá bem alto, bem de cima, como se a ponta de uma seta, desfechada perpendicularmente de além, varasse ali a redondeza anilada.
Era um,e logo após já são muitos, já vêm surgindo inumeráveis, já parecem infinitos, já se cruzam e recruzam,já se encontram e circulam, já se condensam e escurecem.
Eram um grupo e já formam um bando, já vêm crescendo em longas revoadas, já refervem em enxames e enxames, já se estendem em uma vasta nuvem agitada. Toldaram o céu, encheram o ar, vêm-nos ondeando sobre as cabeças. Agora, afinal, como os movimentos de uma grande vaga sombria, pontuada de branco, a librar-se entre a terra e a imensidade, baixa a massa inquieta, rumorejando, oscilando, flutuando, rasga-se na coroa das palmeiras, açoita os fios telegráficos, resvala pelos tetos do casario, e, ao cabo, arfando e remoinhando, turbilhonando e restrugindo com o estrépito de uma cascata argentina, de uma cachoeira de cristais que se despedaçam, chilreada imensa de vozes e grasnidos às dezenas de milhares, pendem, mergulham e desaparecem, numa imensa curva borbulhante, por sobre o largo telheiro abandonado, que essa aérea multidão erradia elegeu entre nós para abrigo do seu descanso nas cálidas noites de verão.