VIVA A ALEGRIA!
O peru assava no forno quando o telefone tocou e prestativa atendi, ouvindo do outro lado uma voz solicita se identificando, e dizendo que o resultado da biópsia havia dado positivo, portanto, o tempo para a retirada do tumor urgia ser rápido, se não a minha vida se esvairia em menos de três meses.
Quem nunca foi comunicada de uma doença grave na véspera do Natal, sem dúvida não vai me entender. Quem nunca recebeu a notícia que a sua vida poderia se findar em três meses, jamais, vai me entender. Pois é, após uma biópsia, o médico, “mui amigo” resolveu dar a notícia por telefone. Penso que, ele viajaria ou passaria o Natal longe da cidade, e assim, não teria tempo para dar o resultado do exame em seu consultório.
Bem, cai aos prantos desesperada, pensei em meu filho que ainda era tão pequeno. Meus familiares buscaram alternativas para a cirurgia e o tratamento, e após, muitas discussões resolveram que a minha operação seria feita no Hospital do Câncer em São Paulo.
Foi assim, três dias depois de receber a notícia traumatizante, já fui operada. Eu, presa a uma cama de hospital escutava os fogos de artifícios, espocarem na Avenida Paulista, anunciando a saída da corrida de São Silvestre. Foram dias de angústia, longe de tudo e de todos. Eu não queria estar ali naquele lugar, me sentia incomodada, com os gemidos dos outros pacientes, as enfermeiras entrando e saindo a toda hora do quarto, os remédios, as visitas que não vinham, o marido mudo, sombrio e estático olhando pela janela.
Queria estar na casa da minha avó na passagem do ano sentada à mesa, coberta com a toalha branca, esbanjando abundância. Maçãs rosadas, bagos de uvas arroxeados, ameixas negras, laranjas adocicadas, morangos avermelhados e suculentos, que se misturavam com uma profusão de tâmaras, nozes, avelãs, castanhas, uvas passas.
Dez, nove, oito,..., três, dois, um. Feliz Ano Novo!
A alegria tomava conta de todos os familiares. As crianças davam e recebiam o bom princípio e guardavam o dinheiro nos bolsos. E novamente, com as mãos estendidas andavam pelos cômodos da casa cumprimentando a todos, esperando receber mais dinheiro, e, assim renovavam a tradição recebida dos seus pais.
Todos sentados à mesa observavam as carnes serem trinchadas e distribuídas, junto das porções generosas de arroz feito no champanhe, salpicão de frango defumado, farofa de miúdos de galinha e nozes moídas. Porque todos estavam com fome. Fome que aumenta quando os olhos encontram a comida, a boca começa a salivar na expectativa de sentir novos sabores.
A cordialidade tomava conta de todos. Ocupados, como quem esperava do alimento a saúde e a vitalidade, se permitiam se envolverem no silêncio deixando perpetuar aquele momento de partilha.
Com essas lembranças, me tornei atormentada, ferida. Resolvi que responderia a esse desafio imposto pela vida. A partir desse dia enfrentei todo o tratamento deixando o otimismo, junto com a alegria fazer parte de mim. A instabilidade emocional volta e meia tomava conta de minha alma, mas a capacidade de dar a volta por cima se tornou o meu maior instrumento.
Os livros sempre fizeram parte da minha vida, e nesses tempos dificieis tornaram amigos inseparáveis. Jules Renard escreveu certa vez: “quando penso em todos os livros que ainda me resta ler, tenho a certeza de que serei novamente feliz”. Levei o seu pensamento tão a sério, devorava-os, estimulavam-me a viver, foi com essa vontade, que voltei a estudar.
Os anos passaram e a doença não me deixava em paz. Sofri mais três recidivas, acompanhadas de tratamentos dignos de constarem nos anais da literatura escrita, sobre as atrocidades feitas pela Inquisição na Idade Média. Mas, todo esse contexto sombrio em que eu vivia não me abatia e os livros foram junto com a família, amigos a minha tábua de salvação.
Tornei-me professora de Literatura, Filosofia. Fiz mestrado e no meu trabalho final tive uma poetisa enfocada no meu estudo, com profundidade o título seria: “COMO ROMPER COM O PRETENSO FUNDAMENTO CIENTIFICO EM NOME DO QUAL SE DISCRIMINA A MULHER, NO CONTEXTO DA INTERPRETAÇÃO DAS OBRAS POÉTICAS DO PARNASIANISMO NO LIVRO DIDÁTICO”.
A introdução alertava os leitores para atentar á seguinte problematização: “Com a finalidade de poder contribuir para a compreensão da construção da visão do estilo denominado de Parnasianismo no livro didático, é que este trabalho pretende rever os seus” homens - poetas “tais como: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Vicente de Carvalho, e, de como são vistos através dos padrões e modelos (comportamento) com relação a uma mulher-poetisa como; Francisca Júlia da Silva Münster, a qual ousou a ser uma artífice da poesia em um contexto histórico, no qual a mulher era concebida por meio de modelos do imaginário masculino, com características conhecidas como peculiares ao seu sexo: fragilidade, bondade, submissão, passividade, e outras.
Qualquer que tivesse sido os problemas que marcaram a minha alma e, portanto sintomatizaram no meu corpo eu queria abandoná-los. Fazia campanhas solidárias junto aos pais dos alunos e, então visitávamos instituições, que amparavam velhinhos e crianças abandonadas. Formamos uma “troupe de palhaços” muito engraçada e até conseguíamos arrancar gargalhadas naqueles rostos tão marcados pelo abandono!
Lembro-me que certa vez na meninice fui aos estúdios da Record, na Avenida Consolação assistir ao Cirquinho do Arrelia. Os três palhaços: Arrelia, Pimentinha e Henrique se cumprimentavam assim: "Como vai? Como vai? Como vai? Muito bem, muito bem, bem, bem", e a platéia rolava em gargalhadas até não poder mais.
Em minha pequenez lembro-me do Arrelia, “transvertido” em palhaço-filósofo falar olhando nos olhos da platéia:“O riso ingênuo que o palhaço provoca proporciona uma imediata identificação com as crianças e reporta os adultos aos seus tempos de infância”.
Ferida, mas triunfante, fiz das palavras do meu querido palhaço um baluarte para carregar quando a vida me exasperava. Entre uma radioterapia, e outra, li em um livro de arte um pensamento de Pablo Picasso, e me reportei aos momentos alegres que tive naquela tarde de Domingo, ouvindo, rindo e gargalhando no cirquinho do Arrelia, com aquele trio de palhaços hilariantes, estava escrito: "Toda criança é artista. O problema é como permanecer artista depois de crescer”.
Fiquei petrificada ao ler o que o artista marcava com suas palavras sábias, senti a importância de ser criança sempre, mas pensando melhor quando é que deixei de ser criança? Brincava de esconde-esconde, cabra cega, boca de forno, amarelinha, passa anel, com o meu filho e seus amiguinhos.
Fui diversas vezes ao Playcenter e ao Hopi Hari em excursões levando alunos, vibrei brincando nos parques do Complexo da Disney nas suas Montanhas Russas, na Torre do Terror, Test Track, bem foram dias de emoções inimagináveis e pra lá de alegres. Mas, no ano passado algo que nunca pensei aconteceu comigo...
Era uma jovem senhora meiga, carinhosa, bondosa, dormia e acordava amando o seu marido e a sua filhinha. Sua vida corria assim sem atropelos. Até que um dia algo surpreendente aconteceu e um turbilhão de acontecimentos tomou conta da sua existência. O seu marido resolveu deixá-la. Foram os dias mais longos da sua vida. E, foi assim que ela me procurou para conversar, e através desse fato, nos tornamos grandes amigas.
Às vezes ficávamos juntas em profundo silêncio, outras vezes sentávamos no píer as margens do Rio Piracicaba, para apreciar o céu matizado pelos últimos raios amarelo-alaranjados do por do sol, embevecidas, vendo-o sumir naquele movimento sem pressa, abandonando-nos na escuridão. Nessa hora a alma se embriagava e em grandes voleios conspirava, maquinava meios de ficar possuída por esse momento de paz ofertado pelo cosmos.
Nos finais de semana escoltadas pela sua filhinha íamos até o alto da Serra de São Pedro ou Brotas descobrir cachoeiras e lugares ainda por nós desconhecidos. Pouco a pouco fomos percebendo os incontáveis prazeres oferecidos por “Gaia”. Nessa hora a liberdade toma conta e a sensação de ser acarinhada pela mãe-natureza satisfaz o espírito marcado pelas dores.
Em uma ocasião paramos no Mirante da Serra de São Pedro, nesse local a natureza consegue se superar, do alto se vê seis a sete cidades da região. O local é belíssimo! E nesse momento de total intimidade com Deus foi que descobri um esporte pra lá de radical. Como não havia ninguém da minha família para me mostrar, o quanto estaria louca em tentar, decidi que cometeria esse desatino.
Precisei assinar um termo de responsabilidade, fui até o local, subi a escada que levava a um patamar, vesti um capacete, uma estranha armadura por entre as pernas e estava pronta pra me atirar em uma aventura muito maior que aquela que foi a de cair do elevador do Hopi-Hari. Nesse momento uma voz interior começou a gritar;
_ Pare! Stop! O que você vai fazer? Ficou maluca? Você lutou como uma fera incansável por sua vida até agora. Não faça essa loucura. Pare!!!!
Esses pensamentos levaram apenas alguns segundos e então....
_Viva! Hurra! Maravilha! Sensacional! Que felicidade!Aiiiiiiiiii!Meu Deus, como é bom! Viva! Hurra! Aiiiiiiiiii!Meu Deus!!!
E foi gritando, gargalhando, exultando de alegria que desci os trezentos metros mais velozes da minha vida. Foi tão sensacional a minha queda, que até me proporcionou mais duas de presente, no concurso em que fui escolhida, como a turista mais maluquinha desse dia, nesse esporte radical.
Foi assim que vendo o chão, as árvores, a grama, o gado passar velozes aos meus pés que conheci a tirolesa.
Não!!!! Caro leitor, essa tirolesa não é aquela nascida no Tirol, no Norte da Itália, mas aquela corda, a qual o leva de um lugar ao outro, carregando você sentado em uma cinta de couro, enroscada no meio das suas pernas, e que através de um pequeno impulso seu (diga-se de passagem, muito difícil de ser dado, pois você fica literalmente petrificado), o atira no espaço para que você enfrente a lei da gravidade, sem se esborrachar no chão!