Respondendo perguntas de meu antigo diário
Quando me pegam arrumando gavetas dizem que estou doente. Na verdade gosto de arrumar gavetas, jogar coisas fora, deixar apenas o necessário. Necessário pra mim é tudo que tenho. Então resumindo, só tiro de minhas gavetas o que chegou até ali por engano, o que não é meu.
Revirando minhas gavetas já encontrei de tudo. Cartas antigas. Não gosto de falar sobre cartas antigas.
Encontrei flores velhas e mortas dentro de uma agenda qualquer. E entre agendas, cartas e flores mortas me deparei com ele. Ele com quem não tinha uma conversa há anos. Ele de quem senti certo pavor ao olhá-lo. Tentei desviar meu olhar, mas ele me chamava. Meu antigo diário e ex-confidente me chamava.
Peguei-o nas mãos e o abri. Na primeira página ele já quis me interrogar. E ele sabe fazer perguntas muito bem. E eu sou péssima com respostas.
- Está com medo de que menina? Você cresceu e perdeu a coragem? Faz tanto tempo que não passa por aqui. Estava com saudades de sua visitas, suas histórias. Ah... Como você era inocente. Fazia-me rir tanto. Eu tenho saudades de você. Esta gaveta é tão escura. O que te fez pensar que depois que você cresceu eu iria começar a gostar de gavetas? Você melhor que ninguém sabe que odeio gavetas. Elas não têm tantas histórias pra contar.
- Desculpa. Fiquei tão ocupada sem você. Passei a ocupar meu tempo com outras coisas. Após te esquecer na gaveta ainda era uma estudante de segundo grau. Mas o restante do meu tempo era ocupado por aulas de dança e encontros com amigos. Se você for ao shopping ele te contará no mínimo uns dois anos de minha adolescência. Depois passei a trabalhar. Ai não houve mais jeito de lembrar de você. Agora percebo que sem você perdi a coragem de me abrir. O mundo aqui fora fez eu me fechar. Eu tento desabafar, mas se não for com você é inútil.
- Você ainda para nos finais de semana chuvosos para observar a chuva e descobrir se ela é mágica ou não? Você ainda tem aquele cachorro que só atendia pelo nome de Totó e você teve que chamar ele assim mesmo? Você ainda tenta descobrir o nome do vizinho da rua debaixo? Ainda come mu mu e leite em pó no pote escondido? Ainda dança durante a tarde no seu quarto?
- Não. Desaprendi a olhar a chuva. Nunca mais tomei banho nela. Mas ainda acho que ela é mágica. Tive que dar meu cachorro quando fui morar em um apartamento. Nunca mais o vi. O vizinho? Lembro vagamente do rosto dele e o nome não sei até hoje. Estava lembrando como era bom comer mumu no pote. O leite em pó ainda como. Mas agora não mais escondido. Dançar no meu quarto faz algum tempo que não. Descobri danceterias.
- Você mudou demais. Preferia você antes.
- Engraçado... Eu também. Mas houve evoluções. Por exemplo, passei a gostar de minha voz. Lembra que eu a achava muito grossa?! Pois é, agora prefiro assim. Minha boca eu amo agora. Lembra que eu dizia que faria uma plástica para diminuir?! Hoje eu acho horríveis bocas finas. E não brigo mais tanto com meu cabelo. Eu e ele somos amigos agora.
- É! Pelo que percebi você continua conversando com seu cabelo. E com os objetos você ainda conversa? Ainda tira um dia no meio da semana pra caminhar sem rumo? Lembro que você e sua irmã adoravam fazer isso. Ainda desenha nas paredes? E suas irmãs? Muita briga entre vocês? Ainda comem pipoca de chocolate à tarde e os bolos de cenoura horrível da sua irmã mais velha?
- Converso com os objetos por que não tenho mais tempo de caminhar no meio da semana sem rumo. Caminhar eu caminho, mas é com um rumo certo. Desenhar agora desenho em papéis. Lembra que sempre quis ser artista plástica?! Agora decidi que vou ser e pronto que se dane o resto. Com minhas irmãs ainda tenho brigas, mas agora é 1% do que era antes. Não temos mais tempo para brigar tanto. Não há tempo nem para as pipocas de chocolate. Mas os bolos de minha irmã agora são bons.
- Lembro de várias histórias. Você conversando com seu cachorro e treinando ele para ser mais educado porque seu pai queria mandá-lo pra carrocinha. Quando seu cachorro brigou com um gambá e você teve que dar banho nele e ficou cheirando a gambá por uma semana. Quando você deu banho nele com a mangueira de sua mãe e no outro dia ela amanheceu em pedaços. Quando ele fugiu todo ensaboado pra rua e você correndo atrás. Lembro que você queria descobrir se era normal ter um lado do corpo maior do que o outro. Lembro das histórias de amores de você e de suas amigas. Lembro do primeiro menino que você gostou. Lembro do primeiro salto alto por quem se apaixonou. Lembro das suas perguntas mais loucas. E você queria se mudar para a Tázmania para conhecer o Perna Longa.
- Heheheheh... E se te disser que ainda quero ir para a Tázmania?!
- Cuida pra não te internarem.
- Você sabe que finjo bem e sei me fazer de normal. Precisamos conversar mais vezes. Talvez eu mudei porque parei de conversar com você. Ou talvez porque não fui atrás do nome daquele menino, porque parei de comer mu mu no pote, porque não gosto mais do primeiro menino que gostei, porque passei a me amar como sou (alguns dizem que até demais ), porque parei de caminhar sem rumo, porque troquei meu quarto por danceterias, porque não brigo mais tanto com minhas irmãs, porque não tenho mais o meu Totó ou talvez porque decidi correr atrás de meu sonho. Como você pode ver nem todas as mudanças são ruins.
- Você mudou porque deveria mudar. Você mudou porque precisava aprender e crescer. Tenho certeza que agora que te relembrei de coisas boas você vai voltar a fazê-las. E as cartas? Aquele monte de cartas que você recebia e mandava?
- Estavam o tempo todo abaixo de você. Na mesma gaveta escura. Mas ainda não gosto de falar sobre cartas.
- Tudo bem. Mas um dia você vai encará-las e falaremos sobre elas.